Nassif e o “partido único” no jornalismo

Ontem, escrevi aqui sobre o comportamento histérico da mídia sendo parte de um processo de “saddanização” de Vladimir Putin, contra o qual tudo vale e nem sequer é possível debater as razões geopolíticas de suas atitudes e tudo se reduz ao “bom ucraniano” contra o “russo mau” que ocupa o Kremlin, já não comunista, mas ainda tão detestável quanto se fosse.

E estamos vendo, na principal emissora de jornalismo do país, a Globonews, metida em episódios ridículos em que esta visão de “partido único” se exprime de modo brutal e grosseiro, atropelando e desqualificando quem, ainda que pouco, divirja da “saddanização” reinante.

Ontem, coube ao veterano Carlos Alberto Sardenberg ser o representante do “brucutu” ocidentalista, partindo para cima do comentarista Guga Chacra, que ousou dizer que a Otan não poderia fazer o que fez hoje a Otan: recusar-se ao risco de combates aéreos com os russos nos céus da Ucrânia.

Vale a pena a leituraque faz Luís Nassif, no GGN, sobre o episódio, mas convém lembrar que não é só no jornalismo que isso se dá. Agora há pouco, o novo herói da mídia, o presidente da Ucrânia, Volodimir Zelensky, dirigiu-se da maneira mais arrogante contra a Otan: ““Todas as pessoas que morrerem deste dia em diante também morrerão por sua causa, por sua fraqueza, por sua falta de unidade”, disse agora à noite, segundo o The Guardian.

Falta só se comparar a Luke Skywalker, porque o Darth Wader o Ocidente já arranjou para ele.

 

Sardenberg, as unanimidades e a
síndrome do dedo-duro, por Luis Nassif

A guerra Rússia x Ucrânia está sendo didática para expor como se dá o processo de formação de consensos na mídia nacional e global, impedindo o livre fluxo de opiniões.

Nem se fale de um irresponsável sem noção, como o presidente da Ucrânia, exibindo-se em entrevista coletiva, falando do seu heroísmo: “se não fosse o presidente da República, estaria na linha de frente com meus soldados”. Nada impediria que Volodymyr Zelenskyy fosse cumprir seu destino heróico na linha de frente. Caxias era comandante e foi para a linha de frente.

Mas ele joga o mundo em uma guerra sem futuro, destrói seu país, aumenta a pobreza mundial, pelos efeitos indiretos do conflito, para se apresentar como “herói” nos salões mundanos da mídia.

E expõe a mídia brasileira ao ridículo

O vídeo abaixo mostra um episódio grosseiro, de Carlos Alberto Sardenberg “patrulhando” Guga Chacra, ambos comentaristas da Globonews.

Sardenberg é um defensor da autodeterminação dos povos, sem um pingo de sofisticação. Cada país é dono do seu nariz, independentemente das consequências de sua decisão sobre os vizinhos. Convenhamos: é um conceito tosco, que foi exaustivamente explorado na pandemia: uma pessoa tem o direito de não se vacinar, se pode afetar a saúde de outra? Ou seja, é um desafio intelectual acessível até ao senso comum.

Guga Chacra indagou o óbvio: quais as consequências quando a decisão individual de um país afeta os interesses (ou a segurança) de outro país e, no caso, o outro é um país militarmente mais forte? É o caso concreto da reação da Rússia à tentativa da Ucrânia de se filiar à OTAN (Organização do Tratado do Atlântico Norte). Daria uma bela discussão, inclusive sobre a necessidade de fortalecimento do multilateralismo. Mas foi imediatamente interrompido por Sardenberg, “acusado” de estar defendendo a Rússia.

O episódio, em questão, é ridículo. Mas repete didaticamente o clima que acometeu o país na ditadura militar e repetiu-se na ditadura civil imposta pela mídia nos últimos anos. É quando qualquer opinião contrária implica em risco para quem ousa ficar contra a unanimidade e se cria a síndrome do dedo-duro, o sujeito que se considera empoderado para delatar fraquezas políticas dos colegas.

No período da Lava Jato, imagine qualquer jornalista dos grandes veículos meramente colocando em dúvida a legalidade da operação. Seria “dedurado” implacavelmente, como foi Guga Chacra, e condenado ao desemprego.

Mas o caso transcende esse episódio ridículo.

Tome-se outro bom tema de discussão: o Itamaraty fez bem ou não em condenar a invasão, mas ser contra a aplicação de sanções econômicas mais severas contra a Rússia?

Tem-se, de um lado, a maioria absoluta dos países condenando a invasão e impondo guerra sem quartel à Rússia. Na outra ponta, dois países – a China e o Brasil do Itamaraty – condenando a invasão, mas deixando a porta aberta para futuras negociações. Como será possível resolver essa guerra sem uma mediação diplomática, sendo que o país agressor não pode ser simplesmente derrotado por ser a maior potência atômica do planeta?

É evidente que terá que haver uma mediação no final. E, havendo, quem serão os países mediadores? É tema para uma discussão rica, mais ainda se forem incluídas peças que faltam nas análises pedestres da mídia – o papel da China e de sua moeda, a rota da seda, a nova divisão geopolítica mundial etc. Por aí se percebe a complexidade do tema e a posição do Itamaraty, coerente com a tradição diplomática brasileira.

No entanto, há uma uniformização da discussão mesmo em outros canais, como a CNN, não submetidos ao patrulhamento primário de Sardenberg (o “patrulhador” da CNN é Boris Casoy, que se apresenta só de manhã). O jornalista que ousar fugir do pensamento binário estará perdido.

No início da discussão, há argumentos explicando a posição do Itamaraty. No final do dia, as opiniões estão uniformizadas.

Cria-se um clima generalizado de emburrecimento em todas as frentes. Não se pode criticar Zelensky para não parecer defesa de Putin. Na ponta esquerda, não se pode criticar Putin, para não fazer o jogo do “imperialismo”.

A maior vítima da guerra, então, é o jornalismo.

 

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