Não restrinjo aos médicos o drama retratado hoje na manchete da Folha, sobre um quarto dos médicos brasileiros não mais atenderem pacientes através de planos de saúde. Seria, em princípio, uma problema privado, nas relações entre estes profissionais e as empresas – milionárias e cada vez mais internacionalizadas, vide o caso do BTG de André Esteves e a Rede D’Or de hospitais.
Mas não é, por duas razões simples.
A primeira é que o dinheiro público paga boa parte do que é ganho por estas empresas e, por consequência, dos profissionais que prestam serviços através delas, bem como os hospitais privados. Porque uma parcela expressiva é debitada do Imposto de Renda devido por pessoas e empresas, como renúncia fiscal do Estado, e outra parte, nos hospitais, pelos pagamentos do SUS. Na revista Radis, da Fundação Oswaldo Cruz, estima-se que o Estado transfere ao setor privado de medicina cerca de R$ 50 bilhões por ano.
A segunda é relativa ao valor social do trabalho e, especialmente, do trabalho médico.
A visão capitalista “pura” do trabalho o faz ser visto como uma mercadoria privada, a qual se compra ou vende de quem e a quem possa detê-la ou pagá-la.
Leva-la ao extremo nos tornaria monstros. Quem não puder pagar o que o jornalista quer ganhar, não leia. Quem não puder pagar o advogado, que vá preso. E quem não puder pagar o que o médico quer, que morra.
Ah, mas o Estado, então, deve suprir todos estes serviços, em alto padrão, para todos.
Bem, não é exatamente assim que se fazia no paraíso capitalista dos EUA, que precisaram chegar ao século 21 para terem um arremedo de sistema público de saúde, o combatido Obamacare.
E nem é assim que os proprietários deste saber-mercadoria o adquiriram: foram anos de escolas de medicina – as melhores, públicas -, de residência médica, o aprendizado nos atendimentos em hospitais públicos. onde se vê de tudo e de tudo se aprende a tratar…
Não se pense que a mercantilização da medicina afeta só aos pobres. As consultas de até R$ 1.500 que o jornal registra serem cobrados em São Paulo. além de porem em dúvida o compromisso deste profissional com a saúde humana, mesmo para aqueles que a podem pagar, afeta a todos, porque deixará, afinal, de ser tributada, num modelo de regime fiscal que, a pretexto de suprir casos merecedores – uma internação emergencial, um acidente, um mal terminal – não estabelece limites para o desconto dos valores no IR.
Ontem, recebi um vídeo de uma amiga, emocionada com a bela história de superação de um amigo, piloto de helicóptero, que perdeu um braço num acidente rodoviário em Santa Catarina. Meses depois, graças a uma prótese, reviveu a alegria de pilotar de novo uma máquina voadora.
A prótese e sua adaptação foram feitas no Centro de Reabilitação e Readaptação Dr. Henrique Santillo, em Goiás. É público, embora sob administração de uma associação privada, sem fins lucrativos e vive, essencialmente, com os recursos do SUS. Se a medicina fosse exclusivamente uma mercadoria privada, a instituição sequer existiria. Não sei se ele pagou algo por ela, talvez. Certamente, porém, muito menos do que pagaria num centro voltado para o lucro.
Talvez não tivesse sequer sobrevivido, pois foi removido por ambulâncias públicas e socorrido num hospital público, o Regional de São José, em Florianópolis. Depois, sim, estabilizado, procurou assistência em hospital privado.
Agora você entendeu a razão da foto lá de cima, retirada da reportagem do Fantástico, que aparentemente nada tem a ver com o tema.
Mas tem.
“Foi retomada uma coisa que a gente achou que estava em declínio: o médico ‘liberalzão’, que atende quem quer, quando quer e cobra quanto quer”, diz Mario Scheffer, coordenador do estudo do Conselho de Medicina de São Paulo, que a Folha publica.
Em algumas especialidades, como a da qual dependo, a cardiologia, a coisa chega a níveis afrontosos, de consultas da R$ 1 mil, proibitivas. Eu, que poderia aliviar o sistema pagando valores razoáveis, sobrecarrego o SUS, onde sou muito bem atendido, aliás. Idem quando tive emergências, por conta do diabetes, numa unidade municipal onde encontrei vizinhos, com plano de saúde, porque este não lhes dava o atendimento urgente que precisavam.
Quando se tratou de suprir a falta de médicos e, sobretudo, sua ausência nas periferias e no interior, o Cremesp fez de tudo para derrubar o “Mais Médicos”, numa mobilização jamais feita contra a degradação das remunerações dos planos de saúde aos profissionais de saúde. Esta, os que puderam combateram-na cancelando os atendimentos ou marcando-os para as calendas ou para as “horas vagas”.
Quando se defende a medicina pública e a adoção de limites razoáveis de transferência de recursos públicos à medicina privada não se está desvalorizando a imensa valia social do trabalho médico.
Defende-se, sim, o seu valor, que é muito maior do que o que possam cobrar mercadejando consultas.
O valor que tem para todos os seres humanos, que não podem ser iguais apenas na morte.
8 respostas
É possível e existem exemplos.
Mas é extremamente difícil alguém criado em uma relativa riqueza, sem nenhuma privação, ficar sensível aos problemas dos pobres e da pobreza.
Eu não conheço algum estudo sobre o perfil social dos médicos brasileiros. De qual classe eles emergiram. É conhecimento corrente, pelo menos em um passado recente, que apenas “filhos de ricos” se formavam em medicina. Sabemos que não é bem assim. Exemplos de superação desta máxima são raros mesmo.
Felizmente nos últimos anos houve significativo acesso de pobres aos cursos de medicina. Esta é a forma mais legítima de mudar a situação mercantilista em que se encontra a medicina do País hoje. Isto, junto com criteriosa auditoria na aplicação dos recursos públicos, pode melhorar em muito a situação.
Boa Vargas, penso que seja ai mesmo.
Não precisa desenhar o motivo pelo qual o SUS é diuturnamente sabotado.
Miguel, sou médico, e gostaria de contar a minha história. Tire suas próprias conclusões.
Formei-me médico em dezembro de 2000, em uma Universidade Federal, após 6 anos de estudo. Ao término da minha faculdade, ingressei no Exército, para o cumprimento do Serviço Militar Obrigatório. Em 2002 fui aprovado no concurso para o programa de residência médica, em Cirurgia Geral, também em um Hospital Público, que totalizou 2 anos. Para os que não conhecem, a residência médica é bancada pelo governo, uma bolsa que hoje vale cerca de 2950,00 reais (em 2002 era cerca de 1200,00). Neste período cumpri, além dos estudos, uma escala em serviço não inferior a 60 horas semanais. Terminado a residência, trabalhei cerca de 2 anos em um Hospital Público da periferia de Brasília (conhecida como a 2a região mais violenta do país), onde não era incomum atender cerca de 100 pacientes em um turno de 24h de plantão. Meu contrato sequer era regido pela CLT (recebia por RPA – Recibo de autônomo). Fazia 2 plantões de 24h (48 h semanais), e nesta época recebia cerca de 6400 reais brutos (cerca de 10.500,00 hoje). Nesta época não fazia jus a 13o salário ou férias, FGTS ou qualquer tipo de direito trabalhista, a não ser o INSS que eu pagava como autônomo. Fazia ainda um plantão de 12h no Hospital Regional, onde realizava cirurgias de urgência, onde recebia mais 1600 reais brutos (por volta de 2.600,00 hoje). Trabalhava muito, mas os 8.000 reais eram uma senhora remuneração para 2005/2006! Mas como não existe o mundo perfeito, era uma ocupação que não tinha nenhuma segurança trabalhista, a prefeitura por vezes atrasava 3-4 meses, renegociava os valores para quitação à menor! E esta é a realidade de muitas prefeituras no país! Apesar de gostar do trabalho na periferia, onde a população lhe dava o reconhecimento social pelo seu trabalho, não podia conviver com a insegurança e a instabilidade da prefeitura. Neste período, não descuidei dos meus estudos, acrescentando mais 2 especializações pagas em 4 anos, na área de Terapia Intensiva (UTI) e Nutrologia Hospitalar.
Prestei concurso em 2006 para a Secretaria de Saúde do Estado, onde fui contratado para uma jornada de 20h semanais na UTI, com o expressivo salário de 3200 reais. Nesta época reduzi minha carga horária na periferia. Em virtude da qualidade do trabalho que prestava, não demorou para que surgissem convites para trabalhar na rede privada de saúde. Após alguma relutância, aceitei trabalhar 24h semanais na UTI por 4000 reais e abandonei a periferia totalmente, principalmente depois da última crise da prefeitura para o pagamento dos prestadores médicos autônomos. Lógico que entrei na Justiça contra a prefeitura em 2007, e até agora aguardo decisão judicial, para receber o que não foi pago.
Apesar de ganhar valores parecidos no público e no privado, e com mais garantias no primeiro (estabilidade, 13o, férias), nunca consegui me sentir satisfeito na rede pública! Falta de medicamentos, equipamentos, equipes auxiliares, falta de leitos eram responsáveis por mortes que jamais deveriam ter acontecido. Por outro lado, não faltava recursos no particular para a prática de uma boa medicina. Em 2008 tive uma crise de depressão muito forte, e acabei pedindo demissão do emprego público que eu tinha, dedicando-se exclusivamente ao privado.
Muitas pessoas acham que somente remuneração é o que importa. Não é verdade! Remuneração é apenas 1 parcela da equação, das quais participam a qualidade do ambiente de trabalho (que não existia no serviço público – pois o assédio moral para trabalhar sem condições é uma constante, afora as picaretagens nas escalas, das quais nunca compatilhei, nas quais os colegas assinavam a folha de ponto e iam embora!) e a possibilidade de crescimento profissional (que no serviço público também é nulo – envolve muito mais política e puxa-saquismo do que competência).
Após 15 anos de formado, ocupo um cargo de gestão em uma rede de hospitais particulares – reconhecimento pela minha competência como médico e como gestor. Ganho muito mais do que preciso para viver com conforto e até com direito a alguns excessos. Tenho boa remuneração, excelente ambiente de trabalho, sou reconhecido pelos meus subordinados e chefes, e tenho possibilidade de crescimento profissional! Em resumo, tenho uma excelente ocupação, coisa que jamais teria conquistado no serviço público! Por quê? Não sou político, não sou puxa-saco, não picareteava nas escalas de plantão, sendo mal visto pelos colegas pela falta de corporativismo….
O que quero mostrar, com o meu exemplo, é que se houvesse desde o início uma política de valorização da carreira médica, talvez eu estivesse até hoje na periferia de Brasília, atendendo pelo SUS, e não administrando a saúde privada! Não considero o Mais Médicos como este tipo de programa! Não o critico pela remuneração (10.000 para um recém formado é um excelente salário!), mas sim pela falta de compromisso com direitos trabalhistas (é uma bolsa de especialização, não salário), pelo fato de após 3 anos o médico é desligado do programa – e aí voltará para os grandes centros urbanos. Se fosse um programa sério, seria uma carreira médica de estado, como ocorre por exemplo com os militares e os policiais federais. Garantiria ao Estado o poder de designar onde, como e quando o médico iria trabalhar, com uma carreira, que de acordo com o tempo de serviço, especializações, qualidade de atendimento, permitiria o médico galgar degraus antes de se mudar para um grande centro urbano.
Infelizmente, assim como na política, no jornalismo, a culpa da má medicina não é dos médicos – e sim do sistema implementado! Assim como o fim do financiamento privado de campanhas permitirá higienizar a política, o fim do monopólio do PIG democratizar a informação, a carreira médica de Estado seria responsável pela formação de médicos preocupados com a saúde da população, e não apenas com enriquecer às custas da doença alheia!
Allan! Presumo que além de estares muito bem ciente (na minha opinião) dos principais problemas que precisamos REVOLUCIONAR no SUS, também assististe o documentário “SICKO – SOS Saúde” do Michael Moore…
Parabéns pela lucidez!
Abaixo, apresento também meu desabafo e colaboração à respeito do que penso ser um caminho lógico para REVOLUCIONARMOS o SUS.
Grande abç !!
O SUS está sendo sabotado, dia após dia, pelos médicos-políticos que chegaram ao congresso financiados pelos interesses ligados aos planos de saúde e hospitais privados, laboratórios multinacionais e indústrias biomédicas.
O SUS não financiou a chegada desses nossos “colegas” ao congresso, e portanto temos aí uma explicação para o vácuo INfértil de suas participações nas comissões médicas (do congresso) com relação:
# à Carreira de Estado para Profissionais da Saúde, que NÃO AVANÇA !!
# à INACREDITÁVEL letargia associada ao “desenvolvimento” do e-SUS (informatização do SUS) que insiste em NÃO ACONTECER !!
# E também com relação ao vácuo no aprimoramento da legislação e financiamento do SUS, essa NOBRE “criatura parida” pelas mãos dos deputados constituintes que promulgaram a Constituição Federal de 1988.
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Outra coisa…
Como é que a cúpula do PT nunca aborda o tema: Auditoria Cidadã da Dívida Pública ???
Estamos abrindo mão de um abatimento de +/- 70% no valor da tal “dívida”…
A auditora aposentada da Receita Federal, Maria Lucia Fattorelli, participou ativamente da Auditoria Equatoriana e repete exaustivamente as semelhanças legais (e principalmente ilegais) entre a nossa dívida e aquela, onde conseguiram facilmente abater 70% de seu valor, com 95% dos credores aceitando imediatamente as novas condições apresentadas pelo grupo que AUDITOU aquela dívida…
Allan, parabéns por ser a pessoa que você é. Honestidade é um tudo. Compartilho contigo as opiniões sobre o serviço publico. As pessoas se corrompem quando estão em modo corporativo. Mas não esqueça, toda a forma de servir é uma dádiva.
E no Rio de Janeiro, antes do Natal, teve um parto na calçada, porque uma médica de uma OS negou o atendimento à uma mulher.
Vale ressaltar que duas enfermeiras foram atender aquela mulher.
Por isso que não canso de repetir: A Saúde no Brasil não será como desejamos enquanto não revogarmos o artigo 199 da Constituição Federal.