Por que o governo do Rio, prefeitura e Globo zombam da Constituição?

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A foto, de Silvia Izquierdo, da Associated Press, publicada na capa da Folha deste sábado, mostra um grupo de pessoas muito assustadas, tentando se proteger atrás de uma kombi. São moradores sem-teto que ocupavam um terreno abandonado da OI no Engenho Novo, Rio de Janeiro.

Em primeiro plano, destaca-se uma jovem negra de coxas grossas. A expressão algo dura em seu rosto esconde seu medo e confusão. É pelos pés, todavia, que podemos ter uma ideia da tensão extrema a que as pessoas na foto foram submetidas. O chinelo verde da jovem de coxas grossas está virado, revelando que ela fez movimentos bruscos. A senhora a seu lado, com o rosto contraído num ríctus de desespero, tem um pé descalço.

A bem da verdade, a desocupação desastrosa, que gerou saques, depredações e incêndios, espalhando pânico e terror nos bairros de Maria da Graça, Jacaré, Rocha, Cachambi e Riachuelo, não começou ontem.  Como tudo que acontece no Rio, a ação teve início há algumas semanas, com uma matéria publicada no jornal O Globo, com viés fortemente negativo, sobre a ocupação do terreno por milhares de sem-teto.

Entretanto, nada disso precisava ter acontecido. A cidade poderia ser poupada destas cenas dantescas. As mulheres, idosos e crianças que vemos nas fotos poderiam ser poupados da violência a que foram submetidos. Em 2012, o governo federal já havia se comprometido a financiar, naquele mesmo lugar, um programa habitacional. A presidenta Dilma Rousseff esteve no Rio e assinou um documento, ao lado do prefeito Eduardo Paes.

Trecho de matéria publicada hoje no jornal O DIA, lembrando a assinatura do acordo:

O acordo foi assinado, em 6 de julho de 2012, diante da presidenta Dilma Rousseff, na inauguração do Bairro Carioca. Em seu discurso, ela comemorou o fato: “E agora, eu fico ainda mais feliz de saber que foi assinado um acordo com a Oi. (…) Hoje, a prefeitura, através do Eduardo Paes, obteve um terreno com a Oi que vai permitir que nós construamos mais 2.240 residências.” A presidenta ainda afirmou que essa era “a melhor notícia” que tinha recebido durante a viagem.

Algum tempo depois, porém, o negócio desandou. O prefeito alegou que a Telemar Norte, proprietária do terreno, cobrou um preço “muito alto”. A empresa cobrava, ao que parece, algo em torno de R$ 20 milhões. Segundo um especialista ouvido pelo jornal O DIA, “se não concordasse com o preço pedido pela Oi, a prefeitura poderia desapropriar o terreno e discutir, na Justiça, o valor que deveria ser pago”.

E agora, alguém vai calcular o prejuízo causado pela desocupação? O que a cidade ganhou com tanta violência? Cinco mil pessoas foram expulsas de um terreno abandonado há anos, sem que houvesse a mínima preocupação com seu conforto e segurança. Lojas, mercados, ônibus, escolas e postos de saúde fechados, quase 2 mil policiais mobilizados, quanto tudo isso custou? Não seria mais barato comprar o terreno, já que havia acordo e disposição do governo federal para alocar recursos para um projeto de habitação? Por que, prefeito?

E aí novamente nos deparamos, estarrecidos, com o racismo chocante do Estado e da mídia, aqui mancomunados. Em editorial deste sábado, O Globo capricha no cinismo ao afirmar, já no título, que “É preciso punir quem manipula e lucra com a invasão”.

Quem lucra? Certamente não são aquelas pessoas expulsas brutalmente de um lugar para o qual foram empurradas, naturalmente, pelas dificuldades econômicas. A empresa proprietária, a Oi, adquiriu aqueles imóveis através de um processo de privatização viciado, contestado. Quanto, efetivamente, a Oi pagou por aquele terreno?

Se o Rio não fosse mais o feudo de um só jornal, se tivéssemos ao menos uma parte da imprensa que tínhamos até a década de 70, quando a ditadura terminou de aniquilar qualquer resquício de jornalismo minimamente comprometido com valores humanistas e democráticos, poderíamos ser melhor informados sobre as razões reais por trás dessa operação. A pergunta cínica do Globo seria prontamente respondida, mas não na direção pretendida pelo jornal.

O Globo acusa a  “manipulação política” por trás da invasão assim como, por ocasião do golpe de 64, dizia que vivíamos a “volta da democracia”. E ataca não a violência contra as pessoas, mas a contra o “princípio da propriedade privada, consagrado na Constituição por se constituir em alicerce do estado democrático”.

Propriedade privada? Um enorme terreno abandonado há anos numa área densamente povoada? Um terreno pertencente a Telerj, empresa pública de telefonia, vendida na bacia das almas num processo de privatização repleto de denúncias?

O Globo nunca ouviu falar em função social da propriedade?

Está lá, na Constituição, no capítulo que trata dos direitos e garantias fundamentais:

XXIII – a propriedade atenderá a sua função social;

XXIV – a lei estabelecerá o procedimento para desapropriação por necessidade ou utilidade pública, ou por interesse social, mediante justa e prévia indenização em dinheiro, ressalvados os casos previstos nesta Constituição;

Essa é a herança da ditadura: uma polícia racista e violenta, uma elite indiferente aos problemas sociais, monopólio da mídia em mãos de uma família reacionária, uma interpretação facciosa da Constituição.

A OAB denuncia as violências, mas timidamente. As associações de jornalistas denunciam as agressões contra seus profissionais. Mas tudo fica por isso mesmo.

O vilão da história fica sendo um líder sem-teto de São Paulo. Nenhum morador é entrevistado. Não haverá “cadernos especiais” sobre a ocupação do terreno da OI, nem sobre sua desocupação.  O batalhão de jornalistas e diagramadores escalados para escrever matérias sobre os 50 anos de ditadura agora estão de férias.

Um editor sarcástico poderia fazer um paralelo entre as manchetes dos primeiros dias de abril de 1964 e a operação de ontem no Engenho Novo, inventando a seguinte manchete:

“Democratas dominam a favela da Oi”.

 

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12 respostas

  1. Acredito que neste caso aplica-se a função social da propriedade, entretanto, há poucas pessoas que já têm casas e ficam invadindo terrenos ou prédios para benefício próprio, puro egoísmo, o que acaba tirando ou prejudicando a legítima causa de moradia e terreno.

  2. A meu ver, não dá para defender a invasão de propriedades. A Justiça uma vez acionada cumpre a Lei, e esta não é nada rósea na questão de despejos, ainda mais despejos coletivos, que podem levar a situações constrangedoras do ponto de vista social. A polícia faz sua parte, impondo a força do Estado. É desse jeito. Não há o caminho do entendimento quando a parte invasora invoca direitos que não tem, mesmo sendo a situação dos que reivindicam mais do que justa. Não dá para uma invasão de dias criar um fato consumado, que imponha ao Estado procurar uma solução. Não é o que regula a Constituição e as Leis. Muito menos dá para admitir que, consumado o despejo, cujo procedimento era do conhecimento de todos, dia e hora da execução, quem jogou no se colar colou e ficou esperando a ação do Estado que viria, jogou para criar constrangimentos, inclusive a mídia, que está interessada somente em alarmar a população. Muito menos dá para aceitar, por panos quentes, procurando aliviar a ação daqueles que em represália saíram queimando viaturas, depredando imóveis, saqueando estabelecimentos, porque são ações criminosas que nada justifica. Por falar desejo de alarmar da mídia, tenho dificuldades, principalmente vindo de parte da Globo, em aceitar a reportagem onde uma senhora é roubada em frente ao prédio da Central do Brasil, quando era entrevistada. Muito difícil ser verdade que um ladrão, por mais ousado que fosse, que sempre ataca no descuido da vítima, tentasse roubar o cordão da senhora, tendo à sua frente o repórter e toda parafernália de transmissão. Tem tudo para ter sido uma armação, ainda mais que o ladrão não consumou o roubo. Quando morreu o câmera da BAND, a Globo já iniciava a colocar a culpa de lançamento do petardo fatal na polícia, logo desmentido por imagens de várias procedência. Quem não lembra a armação do Serra no caso da bolinha de papel, com a Globo apresentando o médico Dr. Klinger e o Dr. Molina, conhecido por suas perícias de encomenda. Mais para trás, no Governo Brizola, quando a Globo para enredar o Governador, sabia o exato local onde levar seus repórteres, câmeras e antena para transmitir o arrastão promovido por favelados em Copacabana. Como nesses casos, a Globo joga para através da amedrontação das populações enredar governantes que estejam ameaçando seus candidatos, que já vai fazer doze anos estão na oposição.

  3. olha só. em algum lugar eu li que nas privatizações das teles, nos contratos, existiam itens que listavam os bens retornáveis (imóveis) da União. essa bosta da anel “deixou o barco correr” e hoje elas (as teles) se apoderaram desses bens. MALDITO SEJA fhc.

  4. É assim que pretos e pobres são tratados no Brasil: com gás lacrimogênio, spray de pimenta e bala de borracha.

  5. Repare se apareceu algum babaca dos direitos humanos com essas pessoas. Se há alguma proteção a elas, semelhante ao menino do poste.

  6. Todos sabiam que esse tumulto iria acontecer. Pinheirinho foi da mesma forma ou pior. Não precisava enfrentar, bastava isolar a área com boa margem, impedir qualquer veículo nas proximidades, fechar o espaço aéreo para helicópteros, trazer ônibus e caminhões para o transporte de pessoas e bens, comparecer com um contingente mais numeroso e, principalmente, dialogar antes de iniciar a operação. Mas não fizeram nada para prevenir ou evitar o confronto. As tvs gostaram pois mostraram ao mundo como, na opinião dessa mídia bandida, é e/ou está a Cidade e o Estado do Rio de Janeiro.

  7. É fato que Eduardo Paes foi inábil nas negociações, mas ressalte-se o malefício que “reportagens” do Globo fazem ao Brasil. As Organizações Globo são um mal para o país.

  8. Acho errada a invasão do terreno. Isso implica, da maneira como foi feita, o crescimento DESORDENADO de mais uma favela, o que não resolveria de forma alguma a questão de quem construísse seu “barraco” por lá. Além disso, iria levar o entorno a enorme desvalorização e, certamente, a área seria rapidamente dominada por traficantes ou milicianos.
    A antiga Telerj adquiriu aquele terreno há muito tempo. Na época, teve que pagar pelo espaço a um senhor que cuidava da área e conquistou, na Justiça, o direito de propriedade por usucapião. Sei disso porque meu pai morava por lá e já tinha me contado, há tempos, sobre este fato.
    No entanto, o imóvel estava sem uso (diferente de abandonado) e a empresa já havia negociado com o prefeito. Logo, toda a culpa deve recair sobre o Eduardo Paes, que tem que prestar as devidas explicações à sociedade o motivo da desistência, sendo que já havia “lucrado” politicamente com o anúncio da aquisição e da construção do bairro Carioca.
    É OBRIGAÇÃO do Município honrar o CONTRATO e construir o que foi PROMETIDO ao povo.
    Agora, dizer que o valor está alto é brincadeira. Aquele terreno vale facilmente R$20 Milhões, e a Prefeitura DOA fortunas para os amigos do prefeito fazerem várias coisas inúteis, como baile de carnaval, por exemplo, que é bancado com o dinheiro do povo, mas o evento é privado e com cobrança de ingressos caríssimos. Sem falar no já citado evento do sorteio da Copa, no qual o Eike Batista recebeu, apenas pelo alugule da Marina da Glória (que é do Município) R$ 3 MILHõES por 1 DIA. E o empresário pagará ao Município pela exploração do local durante os 10 ANOS de contrato, cerca de R$ 1,8 Milhão.

  9. Triste ler esse texto, nada tão longe do que já li por ai. Parece que a tendência dos tempos atuais é defender o pobre, favelado e o negro, independente de qualquer atitude que ele tenha. Parece que ele está isento de qualquer crítica quando se leva em conta sua condição social. Toda situação está sendo relatada de uma maneira muito geral, então eu vou começar a pontuar algumas coisas para vocês. 1 O prefeito Eduardo Paes teve o maior número de aprovação nas ultimas eleições comparada a outras prefeituras do pais (75%). 2 A propriedade privada é um direito também garantido na constituição, e por isso deve ser respeitada independente do que esteja sendo feita com ela, é só você se por no lugar do proprietário, se vc cuida do terreno não tem porque as pessoas tirarem o que é seu só porque você não mora lá. 3 O prédio da telemar não estava totalmente abandonado, tinha seguranças e toda hora tinha reunião dos funcionários da oi lá, 4 Esse ano é ano de eleição, e tem muita gente interessada em desmoralizar a política de segurança pública do Rio de Janeiro, 5 Somente quem acompanhou a ocupação sabe de coisas que não foram divulgadas por conta dessa mídia comprada e sensacionalista que ao invés de descrever os fatos como realmente ocorreram, recorrem ao populismo e a correntes que dão mais eleitores.

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