Ratos e urubus, larguem nossas fantasias

reveillon

Não há nada mais importante para destruir um povo do que lhe  tirar aquilo que o define: sua identidade , a capacidade de sonhar coletivamente e fazer juntos.

E esta identidade, desde os primórdios da civilização, encontra – próprias ou “importadas e adaptadas” –  as festas como expressão deste sentir coletivo.

Tão intenso que Leonardo Boff, ao defini-las, disse que são “o tempo forte da vida, onde os homens dizem sim a todas as coisas”.

Os mecanismos de dominação, com todo o seu poder, se apropriam das representações simbólicas desta identidade, esvaziam seu significado, empresariam-nas, comercializam-nas e as tentam moldar aquilo que é da própria natureza da dominação: a exploração econômica.

E, no entanto, aquele sentido permanece.

Talvez seja a coisa mais importante a se aprender em política, em economia, na vida.

Que os ratos e urubus, como delirou genialmente o Joãosinho Trinta, querem sempre rasgar as nossas fantasias coletivas.

Os nossos sonhos e desejos.

Vivemos – ou viveram vocês, porque minha vocação de eremita vem de longe – nestes últimos dias, um destes momentos, o Ano Novo.

Aliás, até o “Réveillon” é outra destas magníficas provas de que o povão recebe, digere e sintetiza, porque não é palavra de uso corrente nem no francês, onde designava uma ceia tardia, própria do Natal. No meu tempo de guri, só os metidos a besta usavam a palavra e eu, na tolice própria dos pretensiosos, custei a ver este macunaímico processo de fagia de sentido.

Sobre isso, recebo e partilho duas reflexões.

A de meu velho mestre Nílson Lage e a do meu ex-calouro (que hoje tem mais cabelos brancos e mais talento do que eu) Fernando Mollica, colunista de O Dia.

É minha maneira, furtada, de desejar a todos que possamos, apesar dos que nos acenam com o inferno e a danação do desastre nacional, um feliz 2015.

 

A festa resiste

 Nílson Lage

O importante, no carnaval e no reveillon de Copacabana, é que são invenções e realizações magníficas do nosso povo que, a princípio, tentaram excluir e sabotar e, agora, fingem promover.
Lembro-me bem das medidas “profiláticas” tomadas para impedir que as praias fossem “emporcalhadas” pelos despachos a Iemanjá e os moradores das vizinhanças “perturbados” pela gritaria dos festeiros; das ameaças de repressão policial e das pressões da Arquidiocese sobre a redação do Jornal do Brasil.
Ainda no final da década de 1970, a Rede Globo, empenhada em eliminar da programação resíduos do que os militares consideravam inoportuno ou grotesco, reduziu ao máximo a cobertura dos desfiles de escolas de samba, com o slogan “A programação normal e o melhor do carnaval”.
Foi quando Fernando Pamplona, superintendente da Fundação TV Educativa do Rio de Janeiro, com meu modesto apoio (era gerente de jornalismo), mobilizou os recursos modestíssimos da emissora e pôs no ar a transmissão completa dos desfiles.
Eu estava no controle mestre e recebia, sem parar, telefonemas de todos os estados e do exterior pedindo que abrisse o sinal para inclusão na rede.
Foi aí que a Globo decidiu negociar com os bicheiros das escolas de samba, pagou uma nota, segurou a exclusividade e até hoje reduz a cobertura o quanto pode, com chamadinhas ridículas das músicas, a indefectível novela cobrindo o início do desfile, a narração desinformada e palpiteira, tudo enfeitado com as curvas da Globeleza, invenção romântica do Hans Donner.
Mas a festa resiste. Aos palanques, aos bicheiros, aos carolas, aos Marinho, às vedetes. Foi nela que primeiro se ouviu falar de Chica da Silva, que Delmiro Gouveia foi, enfim, lembrado, que o Cristo Trabalhador coberto em um manto negro mostrou que a fé do povo vai muito além dos ditames seculares da hierarquia da Igreja.
É o DNA, a origem, o que diferencia o carnaval e o reveillon do Rio de quantos o copiaram.

 

A nossa bela insanidade

Fernando Mollica

O Réveillon de Copacabana é, de longe, campeão em matéria de insanidade carioca que dá certo. A festa tinha tudo para dar errado numa cidade imensa, marcada pela beleza mas também pela violência e exclusão. É inacreditável que o evento se repita há décadas sem que jamais tenha sido registrado um tumulto de grandes proporções — até os de pequena monta são raros. Nem na época em que o Rio era associado a frequentes tiroteios, a passagem de ano na Avenida Atlântica deixou de ser pacífica.

E olha que somos bons em desafiar a lógica. A apresentação das escolas de samba é outro exemplo da nossa capacidade de driblar o impossível. Comecei a frequentar a Sapucaí dois anos antes da construção do Sambódromo, e até hoje não entendo como pode funcionar um espetáculo com 50 mil artistas, quase todos amadores e que se apresentam sem ter participado de um ensaio geral digno desse nome. Conduzir os imensos carros alegóricos pelas ruas e obrigá-los a fazer uma curva de noventa graus para entrar na pista de desfile são atividades que desafiam as leis da física.

Mas nada se compara ao nosso Réveillon, festa que acabou copiada por muitas cidades brasileiras. Aposto que nem no pra lá de organizado e seguro Japão as autoridades teriam coragem de estimular uma confraternização que reunisse tanta gente, a maioria com elevadas doses de álcool no organismo. Estima-se em dois milhões o número de pessoas presentes na praia — um terço da população carioca. A maior parte do público mora longe de Copacabana, passa sufoco para entrar e, principalmente, sair do bairro, enfrenta filas para ir ao banheiro, gasta uma grana para comer e beber por lá. Tudo isso para acompanhar um espetáculo que dura 16 minutos — as atrações musicais são apenas coadjuvantes e não justificariam o deslocamento de tanta gente.

Nem mesmo a beleza dos fogos explica tamanho sucesso de público, o mesmo espetáculo seria incapaz de reunir tantas pessoas se realizado em outra época do ano. A esperança é que justifica a aglomeração e seu caráter pacífico, ninguém ali parece preocupado em atrapalhar os sonhos e os desejos dos outros. Na passagem do dia 31 para o dia 1º saudamos a vida, comemoramos tudo que correu bem e nos damos outra chance de resolver o que ainda está complicado. Tudo isso merece os fogos e a barulheira. O Réveillon de Copa e o desfile das escolas renovam também a nossa fé no país. Não pode dar errado uma sociedade que reúne pessoas capazes de promover as melhores e loucas festas do mundo.

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12 respostas

  1. Enquanto isso fico me perguntando: E as arvores caídas em São Paulo? A mídia doutrinou a população paulistana a tacar fogo em ônibus (porque agora é do Haddad) e ligar para o prefeito para cobrar a retirada dos galhos da rua. Vivemos numa total inércia, onde o estado deve resolver TODOS os problemas, e o papel do povo, repercutido pela mídia golpista, é cobrar e achar culpado (PT, lógico). Num tempo muito distante existia na população o voluntariado, o cooperativismo, patriotismo, mutirões entre outras formas de mobilização em massa para sanar problemas pontuais ou emergenciais.

  2. ´´O Réveillon de Copa e o desfile das escolas renovam também a nossa fé no país. Não pode dar errado uma sociedade que reúne pessoas capazes de promover as melhores e loucas festas do mundo.´´ É este País que eu acredito e vejo nascer a cada dia.

  3. Não sei porque lembrei do desânimo e da postura contra a Copa do Mundo aqui no Brasil. Apesar de todos os problemas com as obras, etc., todo entusiasmo dos torcedores brasileiros que a gente via nas outras copas de repente sumiu, todo mundo criticando em vez de curtir… obra da nossa elite descarada. Sei lá…

    1. Mas você disse toda verdade, a Copa foi isso mesmo. Eu me sentia muito mal, e ficava pensando: E se a Copa fosse na década de 80? 90? Todo Brasil iria curtir e seria um verdadeiro carnaval. Como estamos no governo do PT, nada importa, a não ser destruir e melar tudo.

  4. O buraco do carnaval e mais embaixo nao aguentaria um ” nao vai ter carnaval” ou ” com dinheiro do carnaval uantos hospitais e escolas podem ser construidas” estes covardes , jabor, guilherme fiuza,nao tem coragem de se meter com o povao, este monopolio do carnaval e’ exemplo da regulamentaçao da midia, pau neles.

  5. O povo brasileiro é a magia…a esperança é a própria alquimia.Realmente,a copa do mundo foi uma sabotagem só!Prática Conspiratória em ação!

  6. A agonia da editora Abril
    por : Paulo Nogueira
    A retirada do busto de Victor Civita do saguão da sede da editora Abril neste começo de janeiro é um capítulo dramático do declínio acelerado daquela que foi uma das maiores empresas de jornalismo.

    A Abril está morrendo.

    Victor Civita foi abatido porque a Abril já não tinha mais como bancar o aluguel do megalomaníaco prédio da Marginal de Pinheiros.

    Ao devolver uma das duas torres, perdeu o direito de exibir o fundador da empresa. Para os futuros inquilinos, o busto de VC, como era chamado, não faria sentido nenhum.

    A morte de uma empresa de jornalismo é um processo lento. Não é fácil identificar o momento em que as coisas começam a dar errado.

    Depois tudo se aclara, e o fim é evidente. As últimas etapas são agônicas, e é isto o que a Abril está vivendo.

    A torre remanescente dificilmente sobreviverá por muito tempo, bem como uma série de revistas e, lamentavelmente, centenas de empregos.

    Como todas as empresas que gozam de reserva de mercado e são objeto de mamatas do Estado – anúncios copiosos, financiamentos a juros maternais em bancos públicos – a Abril nunca foi exatamente um modelo de administração.

    É o preço que se paga por privilégios. Você não tem que ser o melhor da classe para receber prêmios.

    Isto vale para a Abril e todas as grandes empresas jornalísticas brasileiras, a começar pela Globo.

    Nunca foram expostas à competição estrangeira e sempre foram mimadas por sucessivos governos: não há receita mais eficaz para a ineficiência gerencial.

    Dito isso, a agonia da Abril se deve muito mais a uma mudança de mercado do que a uma gestão trôpega em vários momentos.

    Produzir revistas nestes tempos é como fabricar carruagens no final do século 19, quando os carros começavam a ganhar as ruas.

    Nem o mais fabuloso fabricante de carruagens sobreviveu com o correr dos dias.

    A Abril antecipa o que deve acontecer, no futuro, com outra potência da mídia brasileira: a Globo.

    Anos atrás, ninguém imaginava um mundo sem revistas. Mas hoje é fácil imaginar.

    Até há pouco também, igualmente, ninguém imaginava um mundo sem tevê como a conhecemos. Mas hoje já não é tão difícil imaginar.

    Uma pesquisa recente americana traduziu isso em números. A pergunta que foi feita era a seguinte: você acha que seria duro viver sem o quê?

    As alternativas eram internet, celular e televisão. A televisão ficou em último lugar. Alguns anos atrás, na mesma pesquisa, ficara em primeiro: a maior parte dos entrevistados não considerava a hipótese de ficar sem tevê.

    Tanto a Abril como a Globo se empenham em ter relevância na internet. Mas jamais se replicará, no universo digital, a relevância que elas tiveram em mídias que vão se tornando obsoletas.

    Aproxima-se velozmente do fim o tempo em que a Globo consegue cobrar uma fortuna por comerciais de uma programação em constante declínio.

    E está muito distante a era em que a publicidade na internet terá preços remotamente praticados pela Globo na tevê.

    Entre uma coisa e outra, a Globo entrará no que se poderia definir como “Vale do Desespero”, para usar uma expressão em voga entre os economistas.

    Na destruição de um velho mundo na imprensa e na construção de um novo, a remoção do busto de Victor Civita é um marco histórico.

  7. Vou a parafrasear a própria Abril, naquela famosa capa de Veja referindo-se a proximidade, não confirmada da morte de Fidel Castro: “já vai tarde”

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