Não costumo misturar religião e política, até porque com os religiosos, ao menos em tese, partilho a ideia fundamental da igualdade humana.
Mas acho que, quando se espalha a errônea ideia de que há um “povo de Deus” diferente de um único povo, é bom que se mostre que os demônios da ditadura foram igualmente cruéis com os que creram e os que não creram.
E a boa obra é feita hoje pela jornalista e professora da Universidade Metodista de São Paulo, Magali do Nascimento Cunha, ela própria uma evangélica, em artigo publicado na edição de hoje de O Globo.
É a narrativa das monstruosidades que se fizeram a Manoel da Conceição Santos, um sobrevivente das lutas camponesas do Nordeste e ainda hoje, aos 80 anos, um fiel de sua igreja evangélica e de suas causas sociais.
É coisa para ser enviada aos seus amigos e conhecidos que têm fé, mas que não tem luz sobre o que significa uma ditadura.
Quando os Bolsonaros e os “Carlinhos Metralha” são beatificados pela classe média, e lhes batem continência homens “da lei”, é bom que as provações de Manoel sejam mostradas, em todo o seu horror e repugnância.
“Eles não sabem o que fazem”
Magali Cunha, em O Globo
Um dos testemunhos mais marcantes de evangélicos brasileiros que sofreram a repressão da ditadura militar é o de Manoel da Conceição Santos. Nascido em 1935, no interior do Maranhão, ele está entre os trabalhadores rurais que sofrem nas mãos dos donos de terras. Tornou-se membro da Igreja Assembleia de Deus, inspirado pela vida comunitária, a solidariedade e a valorização dos pequenos. Logo se tornou professor da Escola Bíblica Dominical e auxiliar do pastor. Também aprendeu com o Movimento de Educação de Base (MEB) sobre o sentido das injustiças que sofria e sobre seus direitos como trabalhador. Por isso, exerceu sua vocação cristã fundando o sindicato dos trabalhadores rurais em Pindaré-Mirim. Manoel se tornou um grande líder camponês do Maranhão.
Com o golpe civil-militar de 1964 veio a perseguição. Em 1968, policiais chegaram atirando em uma reunião no sindicato e Manoel foi ferido na perna direita. Depois de seis dias na prisão, sem tratamento, parte da perna gangrenou e teve que ser amputada. Sindicalistas e outros militantes levantaram recursos que garantiram o tratamento e a colocação de uma prótese, em São Paulo. Livre, retornou a Pindaré e à causa da justiça. Preso novamente, foi sequestrado por agentes do DOI-CODI e levado para o Rio de Janeiro. Na “antessala do inferno” do quartel da Tijuca (nome dado pelos próprios agentes), a perna mecânica foi arrancada e ele foi colocado nu na “geladeira”, a solitária, onde era tratado literalmente a pão e água e torturado. Entre idas e vindas ao hospital para ser mantido vivo, além das práticas convencionais como choque elétrico, pau de arara e espancamento, o sindicalista pentecostal foi pendurado ao teto e teve o órgão sexual preso por um prego em cima de uma mesa. Manoel só saiu vivo dali para ser julgado, graças à campanha feita no Brasil e no exterior contra o seu sofrimento. Igrejas católicas e evangélicas da Europa e dos Estados Unidos protestaram contra a prisão e desaparecimento do sindicalista, enviando cartas ao Presidente Médici.
Em 1972, Manoel foi condenado e cumpriu três anos de prisão. Quando libertado, foi hospitalizado em São Paulo, com a ajuda de D. Aloísio Lorscheider, D. Paulo Evaristo Arns e o pastor presbiteriano Jaime Wright. Por causa da tortura, o homem urinava através de sonda e ficou impotente por anos. Meses depois, a casa onde Manoel estava foi invadida por policiais, que o levaram para o DEOPS, onde sofreu novas torturas. Na ocasião, o Papa Paulo VI enviou telegrama ao Presidente Geisel exigindo a libertação do sindicalista evangélico. No final de 1975, ele foi finalmente solto e teve o exílio como salvação. Retornou ao Brasil com a anistia de 1979. Aos 80 anos, Manoel da Conceição continua dando testemunho de sua vida e de sua fé no Deus da verdade e da justiça.
Ao assistir às cenas e ler postagens em mídias sociais referentes às manifestações políticas deste 15 de março, não pude deixar de pensar em Manoel da Conceição e nos tantos outros como ele. Cristãos que trazem na pele e na alma marcas da luta pela democracia e pela justiça. Como se sentem ao verem os pedidos por intervenção militar e volta da ditadura que ecoaram clara, nítida e fortemente entre as multidões? E a exaltação àqueles que prestam culto a esse terrível passado recente? Imagino que estejam repetindo a oração de Jesus, que também foi torturado: “Pai, perdoa-os, porque não sabem o que fazem”.
12 respostas
E há ainda quem queira o retrocesso da ditadura manifestando-se abertamente nas ruas por sua volta… incluídos no meio, evangélicos que pregam nos cultos dominicais, o amor incondicional ao próximo.
O Supremo Tribunal Federal deveria rever a Lei de Anistia e julgá-la nula, por por sua incompatibilidade com a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, da qual o Brasil é signatário. Não há ser mais abjeto do que o Torturador, agravado por se agente do estado. Anistiar torturador é ser cúmplice da tortura é isso que nossa suprema corte se tornou. Quanto aos que apoiam a Ditadura, são mentes fascistas de caráter sórdido, que não sabem conviver com contraditório.
Professora.Todos eles,sabem o que fazem.E são impunes,inimputáveis e gozam de todos os privilégios que um cidadão pode ter.Eu os acho imperdoáveis,e acho que se deveria mata-los e fazer sabão.
Chocado com essa historia, esse homem é a prova viva de uma ferida ainda aberta na alma nacional… Isso torna muito mais vergonhoso os pedidos de retorno a “normalidade democrática da ditadura”. Sinto-me envergonhado, por quem foi a rua no domingo passado.
É doloroso rever a história de um torturado. As pastorais reuniam credos diversos e fizeram um grande trabalho naquela época. Os incautos costumam confundir com o comunismo,nem dá para levar em consideração. Concordo que todos os torturadores são imperdoáveis.
Para o bem de todos, TUCANOS e TORTURA, NUNCA MAIS!
Todo ser humano e’ livre para acreditar em qualquer religião, ou também não acreditar…
Isso e’ sagrado….e’ vida!
Existiu um homem no nordeste por nome de Antonio Conselheiro,que viveu da fé, não oferecia risco nenhum,apesar de não
aceitar a republica, e não escondia de ninguém, acreditava na monarquia, viveu absolutamente,numa cultura altamente Cristã, e foram mortos todos que estavam com ele,não tinham o direito de dizer,a monarquia era melhor? não investiu contra a república, vivia em comunhão da fé e em paz,desarmado.
Do período da revolução civil-militar – e entrantes estrangeiros, vejo apenas aforismos e ensaios absolutamente fragmentados de nossa história. Quem um dia irá contar a verdadeira história sem fantasia e medo?
Todo aquele que de uma forma ou de outra , lutarem por justiça e pelos menos favorecidos ão de sofrer , ser torturado , humilhado , e as vezes mortos , como tantos inclusive Jesus.
Pode-se ver pelos comentários no facebook até mesmo na rua que ainda existem muitos reacionários no Brasil. Ontem mesmo peguei um táxi, no Rio, e certa hora do papo o motorista falou “Somente os militares para dar um feito nisto”
Quem teve um familiar como seu pai ou mãe agredidos psicológica e fisicamente agredidos, sejam intelectuais , sindicalistas ou indíos sabe o que é a tortura e o trauma vividos e carregados para uma vida inteira.É uma questão de direito a vida e não a uma sobrevivencia, que é o que temos como resultado das injustiças da nossa história.