Um getulista

getulio

Até boa parte da minha minha juventude, só conheci um getulista.

Meu avô, o pintor de paredes José Nogueira, que sabia o suficiente para escrever o nome e para me ensinar lições de respeito e decência.

Talvez os getulistas fossem tão poucos, na minha visão de menino e rapazote porque eu não os podia ver no seu silêncio.

Afinal, eu nascera quatro anos depois  de sua morte e não posso recordar dela, ao contrário do dobrar de muitos sinos da morte de João XXIII ou do espanto de todos com o assassinato de Kennedy, que meio século não me apagaram.

É que antes do meus seis anos, veio o golpe militar e, ao corpo sepultado uma década antes, veio o enterro do nome na cova das bocas.

Com a mãe e pai professores, aliás, fui “subindo” de subúrbio, do Valqueire para o Méier e lacerdistas conheci vários, inclusive uma vizinha chatérrima que todos chamavam de “Primeira Dama da Vila Kennedy”, porque se ufanava de que o marido detinha  um cargo de administrador do conjunto habitacional, longínquo, para onde foram removidos os pobres das favelas da Zona Sul do Rio.

Só eles falavam, com aqueles conceitos miúdos, parecendo bem arranjados, e sem as palavras difíceis que os poderosos falavam na televisão em preto e branco: “o comunismo apátrida, que de maneira solerte e soez”…

Meu avô ficava quieto, não dizia uma palavra.

Só uma vez ouvi ele xingar, entre os dentes, quando passou Carlos Lacerda para inaugurar uma avenida e ele me levava, garoto, pela mão: “corvo filho da puta”.

Nunca antes e nem depois ouvi um palavrão da boca do “seu”  Zé Nogueira, até sua morte, em 1986. Nem mesmo quando, no final da vida, passou a beber um pouco mais, desrespeitando a regra que me ensinara: “se você beber antes das seis em dia de semana ou antes do meio dia no domingo (sábado era dia de trabalho, também), preste atenção porque está com problemas com a bebida”.

Uma vez ou outra a política entrava em casa, ou porque meu pai tinha uns amigos “esquisitos” dos tempos de faculdade que foram parar lá em casa depois do golpe, para logo ganharem o mundo, seja porque minha mãe resmungava de meu avô tê-la obrigado a copiar panfletos, que sua própria letra não se prestava à tarefa.

No resto, não se falava e não se achava nada, porque – dizia um chiste macabro, “o último que achou ainda não acharam”.

Mesmo na militância de esquerda clandestina e até com Brizola, na redemocratização de 82, getulismo era um conceito que passava longe de mim.

Isso era coisa daqueles “velhinhos”  – velhinhos, veja só, Brizola  voltou do exílio  com meses menos de idade do que tenho agora – e não dos jovens.

Até que um dia, numa conversa com amigos, um deles, médico e filho de um operário têxtil, solta a frase que paralisou o grupo: “nós somos netos de Getúlio Vargas!”

E diante do silêncio geral, completou: nossos pais nos colocaram nas escolas públicas do Getúlio, que eles não tiveram e  no  mundo de direitos que não tinham.

Lembrei-me da pequena placa de metal, já com as beiradas cobertas pelas pinturas, na Escola Técnica onde estudei, a Celso Suckow da Fonseca, que dizia ter sido o prédio concluído para ali funcionar a Escola Técnica Nacional, em 1942.

Era um semi-internato, para filhos de operários, já então convertida em concorridíssima escola de classe média, com um “vestibular” difícil de passar e cujo resultado, publicado no velho Jornal dos Sports, minha avó deixou-me de herança.

Sair dos cortiços, as cabeças de porco, ter uma boa casa do Iapi, levar a filha à Escola Normal para ser professora, mesmo que à custa do pedal da Singer com que minha avó, costurando, completava o orçamento doméstico.

Ele era um cidadão, era um homem com direito ao trabalho, ao salário,  a comer, a educar os filhos. Direito a sonhar, mesmo não sabendo expressar isso em palavras.

Foi isso que o fez getulista.

Vieram-me à cabeça as tolices, a “concessão”, o “direito sem lutas”.

Uma pinóia!

Acordar às três horas de manhã, tomar o primeiro trem para a Central, uma lotação para Botafogo e de lá, da oficina, para as paredes do freguês, isso é sem luta? Isso é para fracos e dóceis?

Deste dia em diante compreendi, de verdade, porque meu avô era getulista e o que Getúlio Vargas foi para os brasileiros pobres.

Tudo o que havia lido, todos os conceitos elitistas que havia absorvido  – ou até me recusado a absorver, quando me filiei ao trabalhismo e aguentei estoicamente a petezada falando  em “pai dos pobres e mãe dos ricos” , e “peleguismo”, e “carta del lavoro” – tudo ficou miúdo, tudo ficou pequeno.

Não eram livros ou frases bem arrumadas, pintadas no papel, eram vidas.

Era o que eu próprio era e sou.

Getúlio Dornelles Vargas não foi  nada e foi muito.

A história é descrita pelos livros, não escrita por eles.

E pessoas ora são uma coisa, ora outra. Raras vezes conseguem conservar a consistência através dos tempos.

Foi o que o povo fez dele e ainda faz, nas profundezas de uma memória da qual nem eu mesmo suspeitava haver em mim.

A dor pública que, como reproduziu aqui o Miguel, descreve o Janio de Freitas, não era pelo corpo morto de um homem, era por um pedaço do próprio peito ferido em cada um de milhões de homens e mulheres, de brasileiros.

Um pedaço que não morre, porque quando arrancam, rebrota tal e qual o fígado de Prometeu, que não era uma fatalidade, mas uma atitude. O que os deuses do Olimpo consideravam um castigo, era o gesto de enfrentamento.

Porque os homens envelhecem e morrem, mas o povo é imortal, ainda que à custa de sofrer com os abutres cotidianos.

É por isso que não posso ser diferente do que foi, na essência, o meu avô e entre meus filhos haverá um igual.

A história humana não é um jardim florido, desenhado a traços inteligentes por pessoas de elevado saber.

Ela é torta, sinuosa, cheia de voltas e abismos.

Muitas vezes feia, feia, feia.

E sempre linda.

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18 respostas

  1. Parabéns Fernando, pelo lindo e sempre atual texto. Getúlio nunca morrerá, pois ele representa a alma do povo brasileiro.

  2. Viva Getúlio, vítima de conspirações e Golpes. Ainda hoje vemos seus inimigos, a espreita, abutres como sempre, oportunistas por dar mais um golpe, é assim sua natureza e só assim buscam o poder.

  3. Nos anos sessenta, trabalhando na Petrobrás, participei das passeatas do “Petróleo é Nosso”, na luta pela estatização da refinaria de Capuava, o que finalmente se deu, em respeito ao monopólio estatal do petróleo.
    Ali, embora morto, Getúlio estava vivo em todos nós e, em mim, continua vivo até hoje.

  4. meu avo meu pai, meus tios tb eram Getulistas,o sr.Elizeu Rocha Lima um meu conhecido me dizia: que andou 20km a pe do sitio onde morava ate piracicaba sp para ouvir e ver Getulio num comício nas eleiçoes de 1950!! Lula , é o Getulio Ressuscitado no meio do povo!

  5. Defender Getúlio e o seu legado é uma luta diária e contínua de todos aqueles que almejam um Brasil soberano e para todos.

  6. Só uma pessoa,me falou de Getulio”era ditadura”foi numa roça, uma senhora,analfabeta de
    escrita e sábia em espírito,me falou maravilhas,como se fosse uma devota falando de seu santo.
    Obs: meu pai nunca falou de politica para nós, nem de religião, só brincava com a gente
    seus filhos eram sua razão de existir e de alguma forma,sabia que o mundo lá fora não passava de conspiradores do qual nos teríamos de manter distância.

  7. No dia 24 de agosto de 1954 eu tinha nove anos de idade. Sofri a morte de Getúlio. Ouvi dizer que já tinha passado da primeira infância.
    Hoje entendo que é uma afirmação pra lá de relativizada, pois sessenta anos depois o mesmo sentimento está presente, na lembrança da afirmação de minha avó semianalfabeta, mas sábia e generosa. Disse ela: O Brasil e os pobres perderam sua defesa.
    Ela, longe de ser letrada, sabia dizer que “o Petróleo é nosso”. Sabia quem eram os inimigos.
    O Povo sabe, por mais que “globos”, “vejas” et caterva tentem enganar.
    Sua fala Fernando encontra eco no fundo do coração dos trabalhadores. Escuto aqui na gare da Central todos os dias, onde vou tomar cafezinho e ouvir a voz do povo, sim senhor, pois distinguem bem quem era Getúlio e quem era “outsider”. (Desculpe, mas é a palavra me ocorre com mais precisão.)
    Percorreremos sim caminhos tortuosos até chegar aonde Getúlio queria.

  8. Agora entendo apos esse artigo porque meu pai dizia que Brizola era a continuacao de Getulio…A salvacao do Brasil soberano e seu povo

  9. Essa belissima homenagem a Getulio Vargas feita por Fernando Brito, mostra que mesmo após 60 anos os inimigos permanecem os mesmos.

    Sonho que um dia a elite entenda que o Brasil pertence somente aos Brasileiros.

  10. Os trabalhadores inativos que se aposentaram pelo Regime Geral ganhando mais de um 1 SM vêm sendo há anos punidos injustificada e incompreensivelmente pelos governos tanto petistas, quanto psdbistas. Nos governos psdbistas, foram alvos de estelionato previdenciário, com a história do redutor de aposentadorias apelidado de “fator previdenciário”; nos governos petistas, com a eleitoralmente estúpida política de redução das aposentadorias (quando medidas em SM). Ao longo do tempo, todos os aposentados do Regime Geral passarão a receber 1 SM de aposentadoria. Isto é justo?

    Os trabalhadores que se aposentaram percebendo mais de 1 SM descontaram para a aposentadoria com base em SMs, logo teriam de receber seus proventos em valores constantes medidos em SM. Se a unidade de desconto é SM, a unidade de pagamento também tem ser. Porém, não é assim: a cada aumento do SM, os aposentados cujos proventos são maiores do que 1 SM têm sua aposentadoria reduzida em SMs.

    Nas empresas, não se vê essa política absurda que o PT pratica em desfavor dos trabalhadores aposentados pelo Regime Geral: quem percebe 20 SM numa empresa não tem seu salário reduzido em SMs a cada dissídio coletivo, por exemplo. Não se vê essa política estúpida e cruel posta em prática contra o funcionalismo inativo de nenhum poder e de nenhuma instância (federal, estadual, municipal).

    A política do PT contra os aposentados do Regime Geral que se aposentaram ganhando mais de 1 SM (política que herda as maldades do governo psdbista, maldades praticadas quando as condições da economia eram muito mais adversas do que agora) é injustiça cruel, flagrante e persistente com os trabalhadores que têm, mesmo sem essa política absurda, as piores condições de aposentadoria dentre todos os trabalhadores. A alegação de que tal política absurda é legal (pois as correções são feitas com base na inflação), não é suficiente frente a injustiça, estelionato e ilegitimidade inerentes a essa política.

    A política do PT contra os aposentados do Regime Geral que se aposentaram ganhando mais de 1 SM é, também, uma estupidez eleitoral. A crueldade contra pessoas idosas esmagadas pela indústria médica-farmacêutica, crueldade que o PSDB parece ter notado, tanto que a está explorando eleitoralmente, tendo o PSDB ideário neoliberal, fala muito mal do PT, um partido, em tese, mais preocupado com os trabalhadores do que o PSDB.

    Na questão dos aposentados do Regime Geral, o PT está pisando na bola tanto eticamente quanto eleitoralmente e traindo seu avô político, Getúlio Vargas.

  11. Eu também, aos 07 anos de idade, sem compreender muito bem, pude presenciar as lágrimas descerem no rosto do meu pai, na hora em que o rádio anunciou a morte de Getúlio. Desde aquela data, passei a distinguir quem realmente fez alguma coisa pelos mais humildes neste país!

  12. Pôxa! Voltei no tempo. Tinha eu 9 anos recém feitos em Julho de 1954, quando a minha vizinha – que mais tarde seria a minha madrinha de casamento – me avisou: tire as suas meias e não coloque os sapatos. Hoje não vai ter aula. O Presidente morreu. Passei o dia brincando mas, a ficha só caiu quando minha mãe e minha tia chegaram e começaram a chorar ouvindo o rádio. Os anos se passaram e eu virei petista e ardorosa admiradora de Lula. Não podemos deixar o Getulismo morrer! O governo petista deu o complemento do que queria Vargas.

  13. ****:D:D . . . . ‘Tá chegando o Dia D: Dia De votar bem, para o Brasil continuar melhorando!!!! ****:L:L:D:D ****:D:D . . . . Vote consciente e de forma unitária para o seu/nosso partido ter mais força política, com maioria segura. . . . . ****:L:L:D:D . . . . Lei de Mídias Já!!!! ****:L:L:D:D ****:D:D … “Com o tempo, uma imprensa [mídia] cínica, mercenária, demagógica e corruta formará um público tão vil como ela mesma” *** * Joseph Pulitzer. ****:D:D … … “Se você não for cuidadoso(a), os jornais [mídias] farão você odiar as pessoas que estão sendo oprimidas, e amar as pessoas que estão oprimindo” *** * Malcolm X. … … … Ley de Medios Já ! ! ! . . . … … … …:L:L:D:D

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