Uma história

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Os primeiros anos foram numa “cabeça de porco” – nome que todos os cortiços ganharam por conta do maior deles, demolido na virada do século 19 pelo prefeito Pereira Passos.

Ficava na Penha, mas era melhor que o de Botafogo, onde o Rio de Janeiro acolheu, em 1930, o casal pobre José e Inocência, chegados de trem do interior e devidamente “aliviados” de suas malas no trem de segunda classe.

A vida ficou melhor para a menina, aos sete-oito anos, com a mudança para o IAPI de Realengo, casas amplas, geminadas, com um grande terreno para criar galinhas e plantar horta.

Paredes pela metade, completadas por tabiques de madeira, para ficarem mais baratas e talvez porque os barulhos “inconvenientes”  fossem mais raros naqueles tempos de mais recato. As paredes inteiras, de sustentação, eram sem emboço, com a pintura feita diretamente sobre os blocos de concreto.

As crianças já podiam ser mandadas à escola, embora o mais velho não gostasse de “estudo” e a menina reclamasse até o final da vida de usar o “tanque colegial”:  sapatos com ferraduras de metal na ponta e no calcanhar, para que não se desgastassem e durassem até que o aperto fosse demasiado.

A vocação de professora veio ainda pequena, aos 12 anos, porque uma menina pobre não poderia pensar em outra coisa e porque a letra redonda começou a ser treinada nas cópias dos panfletos que tinha de fazer para que meu avô colasse, a caminho do trem da madrugada,  nos postes até a estação ainda mergulhada na noite.

Eram em favor de Yêdo Fiuza, candidato presidencial do Luiz Carlos Prestes recém-liberto, que dividia um paradoxal panteão do “moscouzinho” de Realengo com Getúlio Vargas.

Acho que aprendi com meu avô que os paradoxos têm sempre uma chave que os torna falsos.

Veio a escola normal – agora se entende melhor porque a escola normal era o normal para as mulheres –  e o namoro no trem das professoras, dizem às más línguas que começado ao pé do relógio da Central com um cínico perguntar “que horas são?” de um baixinho – baixinhos já tinham uma lábia terrível nos anos 50 – , o casamento e os filhos, “de carreirinha” como se fazia então, para que os dois crescessem próximos o suficiente para que se entretivessem, fossem amigos e, ainda por cima, aproveitassem a roupa.

Eu e meu irmão viemos juntos, respectivamente, com o Sputnik e com Brasília,  ambos “audaciosamente indo onde nenhum homem jamais esteve”.

O casal já era da classe média, já pensava num automóvel – embora o tal automóvel tenha se materializado num Citroen de portas ao contrário e no qual aprendi a fazer uma bomba de gasolina que superaquecia funcionar no “para e anda” com um pano de chão molhado e regado em água fria – e numa casa própria que substituísse o aluguel.

Veio logo um Fusca 58, onde a seta “pulava” da coluna do carro, em lugar de simplesmente piscar e demorou mais a casa no Lins de Vasconcellos, com um muro podre , coberto de coroa de Cristo.

No Fuca 58, ficaram as testemunhas dos problemas conjugais, num compacto (compacto era um disco “single”, como chamam hoje)  entortado pelo sol com o “é proibido proibir” de Caetano e num LP de Chico Buarque, um garoto de belos olhos, cantando “diz que eu sou subversivo, um elemento ativo, feroz e nocivo ao bem-estar comum”.

Na casa, depois, ficaram o desquite, a volta à faculdade de pedagogia abandonada, como deveria ser, “para casar e ter filhos”, os dois empregos, os “filhos da desquitada” bem criados na vila de subúrbio, embora fossem “má-companhia”, segundo a Dona Josefina, que dedicava seu sentido moral a implicar com a garotada, fofocando de casa em casa sobre quem desencaminhava quem e também a um calvo e simpático motorista de ônibus, com seu plácido bigode branco sobre o qual nos olhava com carinho indulgente.

Os filhos cresceram sob dedicação e sua implicância com o nosso “fracasso”.

Um, o jornalista, em lugar de fazer carreira, foi se meter em política. Recebia cartas do “CCC” ameaçando de morte o “comunista”.

Outro, o zootecnista, foi fabricar e vender roupas em Cabo Frio, porque amava o mar e não conseguia viver no interior.

Reclamava de ambos terem ido viver com mulheres com filhos, perdendo a “liberdade” dos 20 anos, mas adorou ambas as noras e mais ainda aos netos que vieram prontos.

E aos que foram feitos depois, igualmente.

Ontem, coube a um deles dizer a coisa mais importante, em seu último movimento, terra adentro, sem flores, velório ou orações. como ela queria.

Que ela  nos fez  ser melhores.

Porque é vã a fé sem obras.

E não há boa obra sem boa fundação.

A dela  estava ali , em filhos e netos, presentes ou espalhados por este mundo global.

A de uma mulher fazer um homem aprender a ser mãe, ainda que duro como um pai deve ser.

E agradecer por isso.

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61 respostas

  1. Fernando

    Parafraseando Drummond, é uma história na tela do computador, mas como dói!
    Abraço fraterno.

  2. Fernando, o seu consolo é saber que ela se realizou como esposa, mãe e avó e que na lembrança de todos que a amam ficarão para sempre os bons momentos ao seu lado. De algum lugar no infinito ela estará velando pelos que ficaram, para que sejam felizes e permaneçam seres íntegros e solidários.Nós, que o admiramos, agradecemos a ela por ter trazido ao mundo um jornalista com J maiúsculo, um farol para nos guiar nos meandros sombrios da política.
    Que ela descanse em paz.

  3. Acabei de chegar de uma tarefa no Sanatório Espírita de Uberaba e no caminho me lembrei de Chico Xavier aquele homem sábio que amparava as mães que perderam seus filhos ou os filhos que perderam as mães, acho que por isso Chico se fez grande, embora se considerasse um cisco, ele nutria profunda dedicação às mães, sentia falta da sua querida mãezinha. E que a sua querida mãe seja amparada pelos bons espíritos e por nosso querido Chico. Muita Paz e Saúde e um abraço fraterno em seu coração querido amigo.

    1. Antônio Carlos, permita-me reportar-me ao Fernando, nesse especial dia, com a sua feliz mensagem. Abs.

  4. Caro Fernando,

    Eles sempre vão embora quando crescemos.
    A saudade sempre fica, e dói.
    Afinal, para eles, e principalmente para ela, a mãe, somos e seremos sempre eternas crianças.
    Filhos, ah, filhos que somos, sempre choraremos.
    A falta. A ausência.
    Só nos resta o consolo da eternidade.
    Como nos assevera o Mestre, o espírito é livre, e sopra onde quer…
    “És mestre, e desconheces isto?”

    Fraterno abraço

  5. De uma mamãe tão maravilhosa saiu uma família linda e um filho que tanto admiramos, mesmo sem conhecer. Um abraço nesse momento !

  6. A vida na verdade,e’ no coração,não existe um outro lugar,onde poderia Deus morar ?
    Nascemos com Deus no coração, e devemos seguir,junto a Deus,até o final,sem medo,porque assim como,nascemos para o mundo,
    nasceremos para vida eterna,e até o
    fim deveremos confiar o nosso espirito, em quem nos deu a vida…

    1. Em verdade,todos nós,temos alguém prá confiar,na terra nosso pai nossa mãe,biológico ou não,bom más existe nosso pai celestial,que não está longe de nós, e que vive conosco, mesmo que não o reconhecemos, e mesmo em nossa hora mais difícil,não nos abandonará…

  7. Fernando, sinto muito por você.

    Mas a vida dela valeu muito a pena. Agora é deixar o tempo trabalhar, e substituir a dor pela mais doce das saudades.

    Grande abraço!

  8. Fernando, não somos “treinados” para essa e para tantas outras…fez-me pensar na minha mãezinha…paz meu irmão!

  9. Os trancos da vida …o sentido de tudo.
    O saber chorar e saber prosseguir ( ou ter que aprender isso no tempo certo de cada um e de cada coisa ).
    Para que depois fique somente a saudade … dolorosa e doce saudade.

  10. meus sentimentos, Fernando… nessas palavras tão humanas, saiba que este carinho e gratidão, nem no céu vai terminar…

  11. Meus sentimentos, caro Fernando. E siga em frente, com a fé na vida que sua mãe lhe ensinou.

  12. Fernando Brito:

    Sou assíduo leitor do teu blog. Você é um grande jornalista. Tua posição política está coerente com a tua origem. Não a renegastes e muito menos a tua mãe. Meus sentimentos.

    Vamos prosseguir “cuanto trabajo”.

  13. Salve Fernando.
    Fica com nossa solidariedade nesse momento sempre tão triste para todos nós.
    Grande abraço em você e seus filhos.
    Luciano Frucht

  14. Brito. Uma história. Certamente Ela deixou um legado(imaterial evidentemente) que, tenho certeza, dos mais primorosos onde, seguramente, estão todas as mais importantes virtudes da vida que fazem e continuarão fazendo parte de sua vida. Abraço fraterno.

  15. As mães são assim mesmo, Fernando. Parem-nos, alimentam-nos, educam-nos. E, enquanto isso, nós nos apaixonam por elas. Em seguida, levam-nos a ter um orgulho enorme por sermos seus filhos. E depois…resta-nos chorar por elas.
    Meus reais sentimentos.

  16. As mães são assim mesmo, Fernando. Parem-nos, alimentam-nos, educam-nos. E, enquanto isso, nós nos apaixonamos por elas. Em seguida, levam-nos a ter um orgulho enorme por sermos seus filhos. E depois…resta-nos chorar por elas.
    Meus reais sentimentos.

  17. Queria te dar um abraço pessoalmente, de admiração e agradecimento. Mas nosso encontro é na web e nela nos abraçamos. A luta continua, camarada!

  18. Emocionante texto, Fernando Brito. É triste quando alguém querido se vai; mais triste quando é nossa mãe. Também passei por isso, perdi minha mãe quando eu ainda era adolescente. Mantenha-se firme, tens nosso apoio (mesmo que via internet). Mas com certeza sua mãe partiu com orgulho de você! Um abraço fraterno, ainda que distante.

  19. Querido Fernando, de bons momentos por aqui, com sua generosidade para todos nós.
    Agora não é um daqueles momentos, mas mesmo assim nos dá este buquê de flores-palavras em homenagem ao Amor de Mãe.
    Quero que você seja muito feliz e que supere esta etapa com muita tranquilidade!
    Peço a Deus que a Alma de sua querida Mãe seja recebida pelos Anjos e assim conduzida ao local mais evoluído possível, de acordo com seu grau de Consciência.
    Abraços!

  20. Serei apenas mais um a me solidarizar com a tua dor. Deixo apenas algumas lágrimas de agradecimento e reconhecimento a esta mulher que não conheci pessoalmente, mas tenho tido o prazer de acompanhar um pedaço dela, todos os dias, na tela de um computador. Abraço, Fernando, e minhas condolências neste momento de dor.

  21. Já se vão 20 anos sem a minha, e a saudade ainda vige. Mas as lembranças, maravilhosas, sempre serão ainda maior. Abraço, Fernando.

  22. Nossos sentimenos, fernando mae e’ aquela que mesmo apos desencarnada ainda nos ensina, nos guia, nos apoia(chico xavier).

  23. Fenando, meus sentimentos. Sabemos que presenciar a passagem de alguém querido é muito duro para os que ficam. Mas a vida é assim mesmo, somos os únicos seres que sabemos que um dia vamos partir. Pode ter a certeza que ela partiu ciente que sua missão foi cumprida com dignidade. Abraços.

  24. Brito, que história maravilhosa. Com todas as dificuldades, os altos e baixos, sua mãe deixou tudo completo. Fiquei muito emocionada. Ela está em paz. Diante dessa homenagem linda, resta a grande saudade, nossa palavra especial trazida pelos portugueses.

  25. Meus sentimentos…Ela cumpriu muito bem o papel com você. Siga em frente e propague aquilo que sua mãe te ensinou,força e segue a tua luta!

  26. Tudo o que passei,que todas passam, todo esforço que todas nós fazemos para criar, com amor,os homens solidários e de bom coração que precisamos, terá valido a pena se meu filho, um dia, escrever algo assim… Minha emoção não cabe em palavras. Oxalá todas as mães pudessem receber um presente como este! Ela foi abençoada, teve muita sorte em ter tido alguém como tu. Lindíssimo texto. Lindíssima homenagem.

  27. MINHA MÃE

    Lembro-te, Mãe, revendo a nossa casa…
    O pequeno jardim, o poço, a horta…
    O vento brando que transpunha a porta,
    Afagando o fogão de lenha em brasa…
    Esfregavas a roupa na bacia…
    Eu ficava na rede, aos teus desvelos…
    Depois, vinhas beijando-me os cabelos,
    A embalar-me, cantando de alegria.
    Dorme, dorme, prenda minha,
    Dorme agora, meu amor,
    És a jóia que eu não tinha,
    Prenda minha, minha flor!…
    Lá no Céu tem três estrelas, prenda minha,
    Todas são de prata e luz…
    Lá no Céu você me veio, prenda minha,
    Por presente de Jesus!…
    E lá se foi o tempo, ante as mudanças…
    Cresci, fiquei rebelde…Estradas novas…
    Entrei no mundo grande, em grandes provas,
    Carregando saudades e esperanças…
    Hoje, volto a rever-te, mãe querida!…
    Quero dizer-te, em minha gratidão,
    Que é o amor sempre amor em minha vida,
    E a própria vida de meu coração.

    Maria Dolores/Chico Xavier
    do Livro Dádivas de Amor

  28. Caro Fernando.

    Sabemos que sua mãe agora está em paz, e voce também por ter cumprido sua missão de filho com muita dignidade.

  29. Sei como é, companheiro. Você traduziu em melhores palavras aquilo que senti quando a minha se foi. Missão cumprida, descanso, saudade, muitas lembranças. Em breve, ficarão na memória apenas os sorrisos, os carinhos, a lutadora que jamais se deixou derrotar. E nós, agradecidos, seguiremos recordando e lutando para continuarmos a ser dignos de todo aquele esforço, e por continuarmos sendo, se possível, um décimo do que elas foram. Abraços.

  30. Caro Fernando, teu texto é uma homenagem muito linda e sensível à memória de tua mãe e nos faz ver que ela foi uma mulher de grande fibra e valor. Receba minha solidariedade e um abraço forte, comovido.
    Mario Madureira – Porto Alegre/RS

  31. É no dia mau, onde não sobra para aparências e simulações, que conhecemos as pessoas.
    A muito usos seus textos para formar minhas opiniões. Discretamente você também tem revelado a sensibilidade do seu espírito.
    Grato por compartilhar. Grato pela confiança.
    Já não o tenho como jornalista integro, como homem digno, mas como admirado amigo.
    Hoje você nos deu a conhecer a herança maravilhosa, valorosa e virtuosa que você recebeu e como você foi formado e forjado.
    Herança que muitas autoridades e príncipes dessa terra não possuem nem herdarão, pois suas casas e vidas foram embrutecidas por torpe ganancia e torpe egoísmo. Reduzidos a sociopatas, são indignos de serem nomeados de brasileiros ou humanos.
    Não existe ninguém mais pobre, daquele cuja herança é dinheiro.
    Deus enxuga nossas lágrimas com milagres.

  32. Fernando, você me fez chorar mais uma vez… como disse Millôr ” Mãe, quem tem não sabe o que está perdendo”. Força amigo!

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