Viagem à memória para recordar dos sonhos

rei

Estes dias de poucas notícias, embora de muito cansaço acumulado, nos permitem certas licenças.

Eu as peço para agradecer, de forma coletiva, às mensagens que recebi de centenas de leitores.

E as respondo com uma acontecimento improvável, o encontro com um morador da mesma vila de subúrbio em que me criei, 40 anos atrás, reunidos por este milagre cibernético que hoje temos. Nos separaram só meses, um chegando ali , outro saindo no mesmo 1970.

O Wagner me escreveu:

É que eu também morei numa vila na rua Lins de Vasconcelos , número 124 , que tinha também uma vizinha com o mesmo nome (tinha o mau hábito de furar as bolas de futebol . . .) e que em tudo se parece com a do texto. Eu morava numa das últimas casas da vila e meu pai dirigia um JK (FNM) , tinha duas irmãs e os colegas de vila eram o Ernani , Erlene , Claudia , Toninho , Afrânio e . . . Fernando , irmão do Zequinha.

E seu e-mail romeu as barragens de minha memória, numa longa resposta que melhorei depois, porque saiu às cachoeiras:

Cara que prazer você me deu,

Sim, foi da Rua Lins de Vasconcelos, 124, em frente ao Centro Tupyara (Wagner me corrige, era o Divina Luz, o Tupyara ficava pouco mais à frente), que eu vim.
Da casa 4, especificamente.
Não da casa 2, da Rosário, linda morena que habitava nosso imaginário. (E o Wagner comete o desprazer de lembrar que o pai era delegado e eu já lembro também que tinha uma Veraneio “sinistra”)
Muito menos da casa 6, onde Felipe e Filápio – era assim que os chamávamos – sofriam como cachorrinhos de pet shop atrás das grades com  que não os deixavam vir  para a rua brincar  e com uma mãe tomava nossas bolas quando caíam lá.
Nem da casa oito, onde Erlene, que engrossava com seu jeito de  Mônica e por isso a chamávamos de Maizena.
Figura semelhante à de seu irmão, o “chefe”, Ernani , que todos ouvíamos e acatávamos.
O Afrânio (você não sabe, andou mal: levou um tiro num assalto. Mas se safou e hoje deve estar como nós, chumbado só pela idade) era da Rua Guapuí, que se juntava à vila numa esquina onde fizemos nosso clube noturno, banhado à luz do poste e ao som de um violão.
Pulo a casa dez porque não consigo recordar, mas tinha a doze, com o Raudino, o Dino Rau, e um monte de irmãos que viraram fumaça. E na catorze, o Toninho, o Perna Linda, galã de cabelos louros e bom de bola.
Do outro lado da vila, a casa 1 era do “Epa”, o neurótico de guerra  que logo transformou a varanda em arcada em bunker. (O Wagner não viu isso, já tinha mudado, e deve lembrar só da pobre extremosa de flores rosas, impiedosamente cortada para dar lugar ao piso de caco de cerâmica)
A  três era da Dona Josefina, a fofoqueira, sempre a dizer que  outro de nós e que era a “má companhia” da garotada.
Na cinco , morava o Fernando que você me imaginou ser, irmão do Zequinha que namorava a Cláudia, irmã do João, o mais comprido de nós e irmãos também da Sonia, mais novinha,  e que se machucou feio com uma garrafa de álcool. Não lembro o nome dos pais, mas eram gente boa, acolhedora, e acolhiam o Decal, sem eira nem beira, que a gente maltratava um pouco mas nunca permitia que outros maltratassem muito.
A casa sete, entre elas, era vazia, era a da “noivinha” que nunca vim a saber exatamente quem era, mas tinha um Gordini   parado na frente. Acho que era a sua, porque antes havia um JK- Alfa Romeo, onde o cano de escape saía pelo para-choque.
E a casa do fim, a do Tio Ivo, pai do Sérgio, um coroa legal como tentamos ser, hoje, joviais e amigos dos jovens.
Jogando de “beque parado” lá de trás ele gritava: “deixa, larga, que esse a natureza marca”.
O Tio Ivo, que nos ensinava a fazer balão, sabia que eles, como tudo na vida, logo caíam também.
O Wagner me dá o retrato de hoje deste lugar de liberdade e convívio, mas já cuidando de não ser  de saudosismo, só: “a nossa vila , agora é toda fechada, inclusive com um muro pela Guapuí e um portão pela Rua Lins;  enfim , como dizia João Saldanha : vida que segue.”
Ô Wagner, deixa eu te dizer: não há muro que a memória não pule, não há portão que o gosto da liberdade não abra.
Você mesmo escancarou um e me fez dizer a todos como, mesmo que acabe parecendo um cavaleiro solitário, trago todos vocês dentro de mim, o tempo todo.
Um homem só existe por sua história e por todos que estiveram nela.
Muito obrigado a todos os que convivemos, como na Rua Lins, 124,  nessa nossa vila eletrônica, o Tijolaço.

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