60 anos depois, a história de uma luta de agora: a Legalidade


Há 60 anos, num 25 de agosto como este, Janio Quadros, um fenômeno eleitoral surpreendente como foi Jair Bolsonaro, sacudia o país, com uma “Carta de Renúncia” de 14 linhas e um mero bilhete “Ao Congresso Nacional”, deixando o governo que assumira apenas este meses antes, em 1° de fevereiro de 1961.

Em nenhuma das duas, apresentava qualquer razão para um gesto, embora todos o tratassem como uma tentativa de causar uma comoção que o levasse de volta ao Governo, com poderes excepcionais, numa semiditadura.

Era o início de uma das maiores crises político-militares do país, na qual uma “junta militar” – formada pelo marechal Odílio Denys, da Guerra, comandante do Exército, o vice-almirante Sílvio Heck, da Marinha, e brigadeiro Gabriel Grün Moss, da Aeronáutica – assumiu o poder e negou a posse do vice-presidente – eleito em separado, à época – João Goulart.

Foram duas semanas de tensão e escaramuças civis e militares, a partir da resistência de governadores dois únicos Estados: o Rio Grande do Sul, com Leonel Brizola, e Goiás, com Mauro Borges, história que recordo e descrevo em vídeo que produzi há 20 anos.

Hoje, Amir Labaki, criador e curador do Festival Internacional de Documentários – “É tudo Verdade”, publica um interessante artigo na Folha de S. Paulo, onde delineia o paralelo entre aquele momento e os turbulentos dias que vivemos.

Labaki compara Janio Quadros e Jair Bolsonaro, ressaltando-lhes as diferenças mas, sobretudo, as dúvidas de que se possa resistir às rupturas com que os dois ameaçaram e ameaçam o país. E se a Constituição de 1988 sobreviverá à fúria dos que querem rasgá-la.

Lembrai-vos de 1961

Amir Labaki

Tanto Jânio Quadros (1917-1992) quanto Jair Bolsonaro chegaram à Presidência vencendo campanhas eleitorais em que se apresentavam como candidatos antiestablishment e paladinos da luta contra a corrupção. Ambos vinham de carreiras políticas sem maior vínculo partidário e, logo empossados, se afastaram do partido que os levou ao Planalto —UDN, principalmente, no caso de Jânio, e PSL, no de Bolsonaro.

Podem os dois serem caracterizados como lideranças carismáticas segundo a fórmula de Weber, com seus seguidores lhes atribuindo qualidades excepcionais que os ungiriam como líderes. Podem também ser definidos como dois demagogos de sucesso, baseados na facilidade de falar com suas bases a partir de formulações coloquiais e slogans genéricos, sendo Bolsonaro muito mais ignorante do que Jânio.

Outra diferença é essencial: Jânio tinha muito mais experiência executiva do que Bolsonaro. Jânio fora prefeito de São Paulo (1953-55) e governador paulista (1955-59); Bolsonaro nunca ocupara antes cargo executivo e foi um deputado federal medíocre por quase 30 anos (1991-2018). Outra distinção importante: também Jânio tinha vocação cesarista e discurso moralista, mas não espalhava “fake news” para minar as instituições democráticas —como Bolsonaro fez, por exemplo, em suas críticas à lisura do voto eletrônico e nas mentirosas acusações de fraudes nos dois últimos pleitos presidenciais.

Em 25 de agosto de 1961, Jânio, ao que tudo indica, tentou pela renúncia —um ato de retirada— catalisar uma crise que o traria de volta nos braços do povo e lhe permitiria concentrar maiores poderes no Executivo federal por meio de uma hipotética “reforma institucional”. Por seu turno, Bolsonaro vem concentrando poder por atos de intrusão, como o aparelhamento da máquina estatal e de parte das forças de segurança e pelo estímulo à formação de milícias antidemocráticas privadas. Bolsonaro sonha com uma marcha sobre Brasília, após as eleições de 2022, que seja eficiente como a Marcha sobre Roma, de Benito Mussolini, em outubro de 1922, e não uma que fracasse como a marcha sobre Washington estimulada por Donald J. Trump, em janeiro de 2021.

O ano de 2022 pode repetir 1961 se houver nova tentativa de veto militar ao respeito à Constituição quanto à dinâmica da sucessão presidencial. Em 1961, os ministros militares (Silvio Heck, da Marinha; Odylio Denys, da Guerra; e Gabriel Grün Moss, da Aeronáutica) tentaram impedir a posse do vice-presidente eleito, João Goulart (1919-1976), por meio de notas explícitas e da mobilização de tropas. Bolsonaro tenta engajar as lideranças militares e provocar uma brigada bolsonarista em sua tentativa de, no caso de ser mesmo derrotado na busca da reeleição, como hoje parece mais que provável, impedir a posse de seu opositor nas urnas —ao que tudo indica, Luiz Inácio Lula da Silva (PT).

A crise de 1961 foi o último teste de resistência vencido democraticamente pela Constituição de 1946, ainda que às custas de um remendo emergencial: a aprovação relâmpago pelo Congresso da emenda constitucional adotando o regime parlamentarista. A potencial reação às eleições de 2022 poderá detonar o maior teste de resistência da Constituição de 1988.

O golpe de 1961 foi derrotado por reações tanto na esfera civil quanto militar. No campo civil, governadores como Leonel Brizola (RS) e Mauro Borges (Goiás) e parlamentares dos principais partidos (PSD e PTB à frente) resistiram e desmontaram o pior da quartelada. Na área militar, lideranças da ativa, como o general José Machado Lopes (1900-1990), comandante do poderoso 3º Exército, e referências já recolhidas à reserva, como o marechal Henrique Lott (1894-1984), concretizaram a cisão nas Forças Armadas, não apenas em retórica, mas também em fuzis, criando ativamente uma barreira armada à tentativa de ruptura institucional.

A dúvida que paira sobre 2022 é se, no front civil, haverá uma maioria de governadores, de congressistas, de juízes e da sociedade civil se empenhando, caso desafiados, na defesa do regime democrático e se, no campo militar, as Forças Armadas como um todo, ou mesmo apenas majoritariamente, também exigirão o rigoroso respeito à Constituição. Só assim será possível, como foi há 60 anos, impedir uma nova aventura autoritária.

 

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