Nos anos 70, escapando da censura, a peça musical Gota D’Água, numa das geniais canções de Chico Buarque, Notícia de Jornal, ao falar dos dramas vividos pelos pobres, dizia: “a dor da gente não sai no jornal”.
O dia clareando, percorrer as primeiras páginas dos mais “importantes” (será?) jornais brasileiros mostra cruelmente que ainda é assim, ou é pior, pois já não há a censura daqueles anos de chumbo a obrigar que o “Brasil Grande” fosse manchete e o “pequeno Brasil” um canto de rodapé.
Os números oficiais do IBGE, dando conta do aumento da pobreza e da pobreza extrema no país não mereceram neles, sequer, uma chamada de capa. Ou, para ser rigoroso, apenas uma linha – “somada à alta da pobreza extrema” – que orna uma pequena nota da Folha, destacando a carência nos serviços básicos.
Nem mesmo com o relatório da Síntese de Indicadores Sociais, oficial, produzida pelo IBGE, revelando dados dramáticos – ou, como se dizia no jargão jornalístico importado dos EUA, “histórias de interesse humano” – como o fato de metade das crianças e adolescentes brasileiros sobreviverem com renda inferior a R$ 400 mensais foi capaz de comover os editores, certamente porque não comoveriam seus leitores.
É curioso que tirar 40 milhões da linha de pobreza em dez anos é fruto de um descalabro de política econômica, mas aumentar em 2 milhões o número de pobres em apenas um ano é visto como uma “recuperação econômica” , ainda que “tímida”.
A invisibilidade dos pobres na mídia e no olhar das elites dirigentes – exceto quando viram índices de violência ou mulambos dormindo nas calçadas ricas, buscando esmolas e restos – acaba, por isso, sendo mais expressiva que as tabelas e números do IBGE.
Acaba sendo um retrato mais aterrorizante de um país que é ensinado a ver a pobreza como um inimigo e não um potencial que é desperdiçado e a uma indignidade a que submetemos seres humanos.
E onde a indiferença passa a ser o estado natural: o médico que não se importa com os desvalidos, o economista que se lixa para o trabalhador, o engenheiro e arquiteto que nos raros projetos de habitação projeta cubículos, o jornalismo que considera “celebridades” e “fait divers” mais importantes que a realidade com que tropeça nas ruas.
Ah, sim, a propósito: em dois sites, apenas, o aumento e o agravamento da pobreza no Brasil são manchete: A BBC, inglesa, e a Deutsche Welle, alemã.
Só mesmo lá para a dor da gente sair no jornal.
14 respostas
Mais uma vez temos aqui a análise do melhor comentarista político do Brasil. Parabéns, Fernando Brito! O tema é terrível, mas o seu olhar foi perfeito. De novo. Forte abraço!
Ainda bem que deixei de ler a grande mídia golpista em 2016. Hoje me sinto muito mais bem informado lendo Tijolaço, Brasil 247, DCM, GGN, Nocaute, Blog da Cidadania e outros do mesmo nível.
Só uma retificação, Brito: a música, genial de fato, é de Haroldo Barbosa e Luís Reis, bem do comecinho dos anos 1960.
Tem também uma gravação perfeita do Paulinho da Viola.
Para aqueles que acreditam que faz parte do atual “movimento” golpista acabar com os motivos de auto-estima e orgulho dos pobres, ou seja, com o futebol e com o Carnaval, existem motivos de preocupação. O futebol já se foi com o suspeitíssimo 7X1, o não-vai-ter-copa e o endeusamento estúpido de quem não merece. Agora, como se não bastasse o ataque religioso, voltamos ao velho combate ao jogo do bicho que caracterizou a cidade nos anos 50 e 60, só que com instrumentos policiais do primeiro mundo. Talvez os militares, nesta nova onda vitoriosa de ultra-religiosidade pentecostal, não desejem mais ser tolerantes com este passatempo da pobreza, como foram antigamente: http://centrodepesquisaeformacao.sescsp.org.br/atividade/ditadura-e-jogo-do-bicho. E tome nova carga de perseguição aos bicheiros: – Polícia faz operação contra lavagem de dinheiro na Acadêmicos do Grande Rio, em Caxias. Parece que uma grande escola sem grande torcida é o lugar ideal para começarem o combate: http://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2018-12/policia-faz-operacao-contra-lavagem-de-dinheiro-em-escola-de-samba
A cidade já não tem empregos, e agora arrisca perder também os empregos do jogo do bicho, que alimentam milhares de famílias.
A indiferença dos ricos é o pedágio diário para o sorriso nos semblantes desfigurados de sensibilidade, que a casa grande não pode deixar de fotografar
Prezado Fernando,
Separemos as coisas. Que o Chico Buarque é genial, isso é coisa que não se discute. Um gigante da arte brasileira. Genial até por ter escolhido cantar essa música num tempo em que ele era proibido de cantar suas próprias canções. Porém, “Notícia de jornal” é de outros autores: Haroldo Barbosa e Luis Reis.
Um abraço,
Chiquinho Genu (amigo e parceiro do nosso querido Marceu).
Por falar em Chico Buarque, nunca seu samba “Vai Passar” esteve tão em evidência. A nossa pátria-mãe está novamente sujeita a “tenebrosas transações”.
Fazendo minhas as palavras do nosso corrupto maior Eduardo Cunha, “Que Deus tenha misericórdia desse País”.
Isso é o que selou a derrubada da ditadura nos anos 80!
A demonstração inequívoca de milhões em sofrimento para que poucos faturem milhões!
A Pec do Teto do gasto precisa que essas imagens não existam!
Tudo indica que, com o passar do tempo, além da dor dos pobres não saírem nos jornais, serão esses que deixarão de sair.
Já postei mais cedo mas parece que não foi enviada uma pequena retificação:
os autores de Notícia de Jornal são Haroldo Barbosa e Luis Reis. A música foi composta em 1961 e muito tempo depois regravada por Chico Buarque.
É Fernando, a falta de humanidade está tão grande que parece uma cegueira sem fim. Penso às vezes que estou em um pesadelo prestes a despertar .Será que o sofrimento alheio ficou invisível para essa casta privilegiada que se acha no direito de usurpar todas as benesses, não deixando para os pobres nem migalhas?
A musica “Noticia de Jornal” e’ do multi-talentoso Haroldo Barbosa e de Luiz Reis. O Chico Buarque interpretou magistralmente,
mas a musica ja havia feito sucesso muitos anos antes na vozes de Elizeth Cardoso, Miltinho, e outros. Mas volta a atualidade com o “Menos Medicos”, os cortes ao Bolsa Familia, e outras vilezas Bolsonarianas.
E agora, acreditam, babacões?