A Igreja Católica e o golpe

Parece até um filme de Glauber Rocha, mas é a realidade. Ou melhor, é um filme de Glauber Rocha. As recentes provas de que Igreja, latifúndio, udenistas de classe média, militares e, claro, barões da mídia, uniram-se em prol do golpe de Estado, ajuda a explicar a força do regime de exceção.

Semana passada, divulgamos o vídeo do Instituto João Goulart onde um militar hoje aposentado afirma, com todas as letras, que o general Amaury Kruel traiu Jango por seis malas de dólares.

A própria Globo, depois de apanhar nas ruas, já admitiu que foi golpista.

A informação, via Carta Capital, de que uma importante autoridade do Vaticano, o então arcebispo Dom Eugênio Salles, prestou serviços à ditadura mostra o quão perigoso e nocivo é misturar religião e política.

Ambos devem estar bem separados, como manda o espírito republicano laico de nossa Constituição (apesar da citação de Deus no preâmbulo).

*

Documentos inéditos provam a colaboração do primaz com a ditadura

Por Marsílea Gombata

Em 1976, sob a égide do Ato Institucional nº 5 e cercada por denúncias de torturas, prisões, desaparecimentos e mortes de presos políticos, como a do jornalista Vladimir Herzog, a ditadura começava a ruir em meio à transição “lenta, gradual e segura” anunciada pelo general Ernesto Geisel. A Igreja Católica, por meio da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), cobrava do governo informações e esclarecimentos sobre os abusos e condenava o caráter arbitrário do regime militar.

Acuados, os generais buscavam minar o ímpeto das lideranças católicas dentro da própria CNBB. Contaram, para isso, com uma das figuras mais influentes do clero: o cardeal e então arcebispo do Rio de Janeiro, dom Eugênio Salles. É o que revelam documentos oficiais obtidos por CartaCapital junto ao Arquivo Nacional em Brasília. Em relatório de 14 de março de 1976, o I Exército do Rio de Janeiro relata ao Serviço Nacional de Informações (SNI) como o cardeal conseguiu conter os esforços da própria CNBB de lançar uma campanha contra a repressão. Ao se referir ao “clero católico”, o documento dizia: “A CNBB pretendia fazer declarações sobre as atuais prisões, envolvendo elementos do PCB, no RJ/RJ. Dom Eugênio Salles conseguiu esvaziar o movimento da CNBB. Irah a Roma ET, no seu retorno ao país, farah declarações favoráveis”.

A evidência fica clara em outro documento do SNI, também parte do acervo do Arquivo Nacional. A carta da CNBB, endereçada ao general Ernesto Geisel em 24 de setembro de 1975, pedia esclarecimentos sobre o paradeiro de presos políticos. Preocupada em obter esclarecimentos “alviçareiros ou trágicos, mas definitivos” sobre casos de militantes desaparecidos, a entidade dizia ao então ditador: “Permanece, no entanto, um determinado número de desaparecimentos para os quais ainda não se obteve informações satisfatórias. (…) Até esta data, no entanto, os esclarecimentos não foram satisfatórios. Isto é motivo de desespero para as famílias dos desaparecidos e de angústia para nós pastores”. O então presidente da CNBB, Aloísio Lorscheider, termina a carta com uma súplica: “Gostaríamos de receber melhores esclarecimentos, bem como qualquer retificação, sobre imprecisão dos dados ou fatos aí contidos”.

Diante da pressão, os militares usavam dom Eugênio – arcebispo primaz do Brasil desde 1968 – como uma espécie de garoto de recados, de acordo com o documento do I Exército do Rio de Janeiro ao SNI, de 1976. À época da prisão de jornalistas ligados ao PCB, como Oscar Maurício de Lima Azêdo e Luiz Paulo Machado, foram coletados depoimentos de outros profissionais de imprensa, como Fichel Davit Chargel e Ancelmo Gois, por meio dos quais seriam reveladas operações do PCB no Rio. Com tais informações nas mãos, os militares pressionaram o fotógrafo Luiz Paulo Machado para que redigisse uma carta de repúdio ao comunismo, a fim de demonstrar arrependimento pela militância. A existência da carta de próprio punho, ressalta o documento oficial, era para ser mantida sob “alta compartimentação” (sigilo).

Apesar da carta escrita na madrugada de 13 para 14 de março, os militares queriam mais. Pediram, como relata o documento da Operação Grande-Rio – que visava “buscar intimidar ou desencorajar livre manifestação subversiva VG especialmente por meio de prisões de subversivos selecionadas por suas atuações destacadas” –, que dom Eugênio conversasse com a mulher do fotógrafo, Elaine Cintra Machado, para sugerir procurar o comandante do I Exército e obter informações sobre o detido. Era de extrema importância, no entanto, que o arcebispo deixasse transparecer o mínimo sobre a relação próxima que tinha com os militares. “Dom Eugênio Salles, por solicitação do CMT do I EX, fazendo transparecer ser iniciativa sua, aconselhou a Elaine que procurasse o CMT do I EX, dando a crer, também que soh o Exército poderia cooperar com ela.”

O objetivo seria pressioná-la, a fim de conseguir “o apoio ET a cooperação de Elaine”, como sugere o relatório sobre os procedimentos a serem tomados com a militante denunciada pelo marido como “responsável pelo movimento financeiro do PCB, no RJ”. A intenção era “desencadear de imediato uma ação psicológica sobre a esposa de Luiz Paulo Machado, Elaine Cintra Machado, com base na “carta-repúdio”.

(…)

Discurso. Líder ecumênico metodista e coordenador do Grupo de Trabalho da Comissão Nacional da Verdade que investiga o papel das igrejas durante a ditadura, Anivaldo Padilha reconhece que a figura de dom Eugênio é controversa: além de ter atuado a mando dos militares, chegou a negar ajuda a militantes, inclusive os católicos. “Dos pronunciamentos dele, não me lembro de nenhum explicitamente apoiando a ditadura, mas lembro de muitos outros criticando setores de oposição, especialmente a esquerda.”

Da mesma visão compartilha dom Angélico, bispo auxiliar do cardeal dom Paulo Evaristo Arns, arcebispo emérito de São Paulo cuja trajetória foi marcada pela proteção aos militantes e que, inclusive, mais de uma vez esteve com o então ministro-chefe da Casa Civil, Golbery do Couto e Silva, para lhe entregar listas com nomes de desaparecidos. “Do que conheço a respeito da atuação do cardeal dom Eugênio, a não ser em casos isolados, ele realmente não se confrontou com a ditadura”, avalia.

Não são poucos os casos nos quais dom Eugênio foi chamado a ajudar e a fazer frente ao regime militar e não deu ouvidos. Um dos mais famosos é o da estilista Zuzu Angel, cujo filho Stuart foi torturado e morto pelo Serviço de Inteligência da Aeronáutica. Ao procurar dom Eugênio, bateu com a cara na porta. Sua filha, a colunista social Hildegard Angel, em mais de uma ocasião disse que o cardeal “fechou os olhos às maldades cometidas durante a ditadura, fechando seus ouvidos e os portões do Sumaré aos familiares dos jovens ditos ‘subversivos’ que lá iam levar suas súplicas, como fez com minha mãe”.

A omissão, o silêncio e a compra das versões dadas pelos militares para acobertar torturas e mortes nas prisões por dom Eugênio acabavam sendo respaldados pela mídia, com quem o cardeal mantinha ótimas relações – vale lembrar que ele escrevia artigos para O Globo e Jornal do Brasil com certa regularidade.

(…)

Assessor de imprensa de dom Eugênio por mais de 40 anos, Adionel Carlos da Cunha discorda. “Desconheço completamente qualquer ação do dom Eugênio nesse sentido (de colaboração com os militares). Pelo contrário, a ação dele foi de conseguir salvar mais de 5 mil militantes”, conta.

Trajetória. Um dos nomes cogitados para suceder ao papa João Paulo I, em 1978, o arcebispo nascido em Acari, no Rio Grande do Norte, em 8 de novembro de 1920, foi próximo do Vaticano como nenhum outro cardeal brasileiro. Ao longo de seus quase 60 anos de episcopado e mais de 40 de cardinalato, nomeou 22 bispos e 215 padres. Sempre foi um ferrenho opositor à Teologia da Libertação.

Para dom Angélico, a posição de dom Eugênio era clara: “Não era uma postura dúbia. Basta analisar historicamente”, disse, ao lembrar que a ditadura foi construída pelas “classes conservadoras, os grandes interesses econômicos e o apoio da CIA”. “Vivíamos em meio à polarização indevida entre o mundo livre e o mundo comunista. E muitos na Igreja temiam essa onda comunista.”

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Uma resposta

  1. Miguel
    O seu texto tem um engano: “Eugênio Câmara” no lugar de “Eugênio Salles”.

  2. A liga do golpe , forças que se uniram para intentá-lo , permanece em estado latente. Mídia , setores da elite , udenistas em geral , estão ativos. Igreja e militares , hibernam …

  3. Sempre tive admiração pelo comportamento de Dom Evaristo Arns, de Dom Helder Camara, de Dom Alysio Lortceider, Frei Beto, Frei Tito e muitos outros.

    1. Também sou grande admiradora de Dom Aloísio Lorscheider, Dom Paulo Evaristo Arns, Helder Câmara, Frei Tito de Alencar e tantos outros que confrontaram a ditadura e defenderam os militantes políticos de esquerda torturados e mortos sendo Tito de Alencar uma das vitimas da tortura levado ao suicídio.

  4. A verdade salva e liberta. Hildegard Angel é testemunha viva da covardia de Eugênio Sales na ditadura. Mais do que isso foi conivente com a ditadura na tortura e morte dos militantes. Ficara na historia como José Maria Escrivá que apoiou o ditador Francisco Franco nas atrocidades praticadas ou como membros da igreja católica que apoiaram o facínora Hitler. Digno de vergonha e execração publica.

    1. Dom Eugênio Sales apoiou a ditadura e se calou diante da tortura e assassinato de militantes políticos. Negou Jesus Cristo varias vezes e não honrou o nome dELE como deveria.

  5. Nunca tive duvidas, quanto ao caráter desse dedo duro, a Globo e que gostava de enaltecer
    as virtudes desse facínora, Desde o começo da década de 70 tenho acompanhado. mais
    devemos ir com muita calma nesse momento, ir acusando a igreja católica de ter colaborado
    com a ditadura e outra coisa .Cade o domínio do fato . Não podemos atribuir os erros desse
    facínora a totalidade dos membros da igreja católica . Por isso mais devagar com o andor.

  6. Não foi só aqui que membros da Igreja Católica agiram de modo absolutamente contrário as suas pregações. Em Cuba, logo após a Revolução, o primaz da época, jutamente com seus pares nos EUA, foi um dos principais artífices da Operação Peter-Pan, quando, disseminando uma campanha terrorista que afirmava que Fidel e seus companheiros enviariam todas as crianças cubanas à União Soviética para serem transformadas em sabão ou em conservas, levou centenas de famílias a mandar seus filhos para os EUA. Lá, ficavam em campos de triagem, onde família americanas escolhiam alguns para adoção. Hoje adultos, muitos têm até hoje problemas psicológicos por conta desse passado, como mostra o vídeo documentário sobre a obra “caridosa” daquele “santo”homem.

  7. Os médicos receitando o voto contra a Dilma em represália à vinda de médicos estrangeiros, estarão cometendo o mesmo pecado. Golpe.

  8. O governo Lula barra Dilma convocou o Exército para afastar os sindicalistas.

    Definitivamente, não foi pra isso que Marighella morreu.

    Lamentável!

    Gildo Araújo.

  9. O governo Lula barra Dilma convocou o Exército para afastar os sindicalistas.

    Definitivamente, não foi pra isso que Marighella morreu.

    Lamentável!

    Gildo Araújo.

  10. Olha, e ainda tem gente da Rede apoiando a Marina, tentando justificar o injustificável… Que carisma é esse que ela tem? Lembra mais pastor evangélico que faz o fiel ”ter vontade” de dar dinheiro pra ele.

  11. O governo Lula barra Dilma convocou o Exército para afastar os sindicalistas.

    Definitivamente, não foi pra isso que Marighella morreu.

    Lamentável!

    Gildo Araújo.

  12. O governo Lula barra Dilma convocou o Exército para afastar os sindicalistas.

    Definitivamente, não foi pra isso que Marighella morreu.

    Lamentável!

    Gildo Araújo.

  13. A gritaria tem toda razão de ser. Eles não fizeram e não fariam e sabem o que vai significar para o nosso País essa corajosa empreitada. Viva Dilma. Obrigada, Presidenta!

  14. O governo Lula barra Dilma convocou o Exército para afastar os sindicalistas.

    Definitivamente, não foi pra isso que Marighella morreu.

    Lamentável!

    Gildo Araújo.

  15. A gritaria tem toda razão de ser. Eles não fizeram e não fariam e sabem o que vai significar para o nosso País essa corajosa empreitada. Viva Dilma. Obrigada, Presidenta!

  16. Nem falemos desses evangélicos ignorantes e retrógrados que estão ganhando cada vez mais espaço no Brasil. Que lástima…

  17. A Igreja Católica foi uma resistência contra a ditadura, e por isso era chamada de comunista até. Se é que é verdade a acusação contra D. Eugênio, isso não pode ser usado como uma generalização da atuação da Igreja em relação à ditadura, pois essa posição foi minoritária. Já em relação ao golpe militar, não apenas na Igreja, mas em toda a sociedade, houve quem foi a favor, quem foi contra e quem não tomou posição. Provavelmente, a Igreja não tenha na ocasião tomado posição a favor ou contra, o que parece ser de acordo com a opinião do blog em relação ao que deva ser a posição da religião no estado laico. Contudo, nos anos seguintes sabe-se que a Igreja foi das poucas instituições que se posicionaram e atuaram, na medida do possível, contra as barbaridades da ditadura e em favor da conscientização política da população das periferias.

  18. A separação entre a Igreja e o Estado é um princípio republicano. Mas também é um princípio cristão, estabelecido pelo próprio Cristo, quando diz a Pilatos: «O meu reino não é deste mundo” (João 18:36). Ou quando diz: «Dai, pois, a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus.» (Mateus 22:21). Essa passagem encontra-se também em Marcos 12:13-17 e Lucas 20:20-26. A demarcação entre os dois mundos (o espiritual e o terreno) é clara. Quando a Igreja deixa-se instrumentalizar por aqueles que querem perpetuar iniquidades do mundo terreno, ela distancia-se daquilo que Cristo ensinava.

  19. Onde se lê subversivos, leia-se defensores radicais da constituição nacional. Subversivos foram (e ainda são) os que se ocultavam atras dos militares…

  20. Durante a História a Igreja Católica sempre se uniu aos poderosos, e com isso manteve seus privilégios.
    Não podemos ,no entanto, ser injustos com os padres das diversas comunidades de base, que lutaram e sofreram com a ditadura. Não podemos esquecer, especialmente de D.Paulo Evaristo Arns, ferrenho opositor da ditadura e que por sua influência direta, salvou muita gente.
    Não podemos esquecer também, que os padres da corrente Teologia da Libertação, e aqueles que conduziam seus fiéis para luta pela terra, igualdade social e justiça, foram duramente perseguidos pelo Papa João Paulo II, e seu assistente na época Joseph Ratzinger (Papa Bento XVI).

  21. Igreja Católica, sempre presente na história mundial, sempre se aliando aos ditadores e homicidas, construindo assim seu passado vergonhoso dese sua criação, la nso tempoes de Constantino, no Império Romano.

  22. então, agora com a mesma notoriedade que vcs deram essa à essa reportagem,façam com o papel que teve Dom Evaristo Arns, nesse mesmo período

  23. A palavra DEUS da Constituição não se refere ao Deus católico ou evangélico mas ao Deus Universal de todas as religiões.Quanto a Igreja Católica sempre esteve ao lado do poder.Os palácios Episcopais ficavam sempre ao lado do palácio governamental aí o entrosamento era mais intenso.Na ditadura não se fizeram de rogados.Lembro que no ano inicial da ditadura ficávamos adorando o Santíssimo por que os comunistas estavam invadindo o Brasil.

  24. “O MUNDO SÓ ESTARÁ A SALVO QUANDO O ÚLTIMO DITADOR MORRER ENFORCADO NAS TRIPAS DO ULTIMO PAPA”

  25. Concordo que a “Igreja” tenha forte vinculação com as estruturas conservadoras de poder e até , de certa forma, alguns setores colaboraram com a Ditadura. Mas também temos muitos membros da “Igreja” que se colocaram a serviço da libertação do povo…principalmente a ala denominada progressista e não foram poucos os que deram a vida nessa luta….Não é a toa que a Teologia da libertação é perseguida dentro da “Igreja” e pelos grupos conservadores do poder….a Ditadura é um absurdo inexplicável e inaceitável…..cito para lembrar…D. Hélder Câmara, Dom Péle, Dom Pedro Casaldáliga, Pe Reginaldo Veloso ( Recife), Pe Henrique ( Recife – assassinado) , enfim de qual “Igreja ” estamos falando?????/

  26. Sieg Heil! Por mi amada iglesia La Santa Iglesia Católica, a la lucha contra los sarracenos y los cerdos judios

  27. Lendo o título “A Igreja Católica e o golpe” faz-no pensar que toda a Igreja foi partícipe do golpe.
    Ao ler o texto, é sempre citada uma pessoa.
    O correto seria “Integrante da Igreja Católica e o golpe”.
    Por que disso isso?
    Sempre criticam o PIG pelos textos desconexos. Então, gente, não façamos textos semelhantes.

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