A milícia escala o Planalto. Por Nílson Lage

A última campanha eleitoral levou ao governo do Estado do Rio de Janeiro uma estrutura de poder marginal com traços tipicamente cariocas, a milícia, e a alçou ao mais elevado nível decisório da República.

O nome não diz bem o que é a coisa: trata-se de um efeito da disputa contínua — tanto bélica quanto diplomática — entre policiais e traficantes (uns com os outros e entre si) pelo controle e pacificação de grandes concentrações urbanas irregulares. Resulta tanto do culto dos super-heróis acima da lei quanto da tentativa de uma sociedade radicalmente liberal conviver com outra, radicalmente repressiva.

A milícia é grosseira e inculta. Dá-se bem com o funk e o sertanejo universitário — mundialização do folclore e expressão lustrada do atraso dos cafundós. Atende à solução fácil de quem busca culpados para problemas de solução difícil, mas antecipa, talvez, a era sem estados e política visível — o controle impessoal que dirigirá os homens por aplicativos, tornando-os livres como pedras que rolam no rio, as maiores por cima das menores.

Tudo começou quando soldados de regimentos baianos oriundos da campanha contra a cidadela de Canudos foram trazidos ao Rio de Janeiro, no final do Século XIX, e acantonaram com suas famílias na encosta do Morro da Providência, junto ao Quartel General, hoje comando do I Exército. Nascia a favela, filha da República que cresceria com a especulação imobiliária e, na raiz, a desigualdade entre regiões do país e o empobrecimento de áreas rurais próximas da metrópole. Sua multiplicação e expansão estimularam o racismo entre os mais ricos e ilustrados — os que se imaginam brancos. Sobrevive de servir à cidade; distribuir drogas no varejo é um dos serviços mais lucrativos que presta.

Presa em armadilha, na fronteira entre dois mundos que se estranham, a polícia negocia, em cada comunidade, com o poder local, exercido pelos traficantes; quando o varejo do tráfico se organiza em estruturas maiores, a negociação se eleva do pelotão à companha, desta ao batalhão, ao comando ou ao governo do Estado, como em São Paulo. O entendimento padrão é liberar o tráfico em troca da paz no entorno urbano. De uma forma ou de outra, corre dinheiro em tais ajustes.

A aceitação desse mecanismo, no Rio de Janeiro, apoia-se na tradicional convivência da população com o jogo do bicho, promoção inventada para financiar um jardim zoológico privado e que gerou complexo de operações bancárias extralegais de alta confiabilidade pública e difusão nacional. A ilusória repressão a essa contravenção — e as vantagens de tolerá-la — é o modelo copiado nos acordos entre polícia e tráfico. Um ex-oficial do Exército e próspero banqueiro do jogo, o Capitão Guimarães (Aílton Guimarães Jorge), é uma espécie de patrono desses ajustes.

Em tais circunstâncias, era previsível que a organização policial se desdobrasse formando grupos paralegais com pessoas afins — militares reformados ou dispensados do serviço, alcaguetes, valentões — para a conquista do espaço que a lei não lhe permite ocupar e dos lucros de toda sorte de atividades nas áreas faveladas, da construção civil e incorporação de imóveis ao fornecimento de luz, gás, televisão por cabo e transporte, além da cobrança de taxas de segurança … e, afinal, da exploração do tráfico.

Como toda organização criminosa de porte, as milícias cuidam de se infiltrar no poder político e associar-se a máquinas ideológicas que exercem o controle psicossocial da comunidade excluída. Quando se trata de perpetuar a exclusão em massa, a solução que mais atende aos interesses dominantes é a sublimação pela fé — dai a associação histórica entre religiões e impérios. A violência é subsidiária e eventualmente, os que a aplicam, como os melhores ginetes, tomam as rédeas nos dentes.

A política, no Brasil, de faz com dinheiro e se beneficia do instrumento de fraude e coerção de que as milícias dispõem — estão aí os casos do Queiroz e da vereadora Marielle; as igrejas de confissões evangélicas neopentecostais oferecem ampla oportunidade de legalizar fundos arrecadados fora das normas legais, porque não pagam impostos e recebem muitas doações voluntárias não declaradas.

Armou-se, assim, a equação que domina a cidade do Rio de Janeiro desde que se sufocou a onda de idealismo cuja mais típica expressão foram os Cieps, o Sambódromo e a ordem dada aos policiais para que, diante da porta de um barraco, pedissem “Por favor, dá licença?” — coisa que causa estranheza não só na burguesa Gávea Pequena ou no Recreio dos Bandeirantes, mas também na Tijuca dos coronéis e até no Méier. dos quase proletários.

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12 respostas

    1. Excelente. E foi justamente o extrato dessa mistura que a mente deturpada, fanática e irresponsável de 57 milhões de idiotas colocou sobre a cadeira presidencial, juntamente com três macacos brancos, deformados na alma pelo ser abjeto que os gerou e os adestrou. É um processo que poderá exigir anos para que seja debelado e, mesmo assim, a depender do “republicanismo” conivente e acomodado, que sempre faz com que este país tropece, no momento em que consegue olhar para luz, um momento antes de se libertar..

  1. Exata a leitura. O fim dessa trágica história não pode ser bom. E pior, não temos meios e forças para tentar uma reviravolta posto que o Rio está completamente dominado pelos evangélicos.

  2. Isso mesmo, Antonio. Deixo este comentário para agradecer a didática explicação. Muito obrigado, Fernando Brito.

    É incrível e lamentável testemunhar que muitos cidadãos da classe média que habitam a cidade do Rio de Janeiro acreditem que, armados, estarão mais seguros em meio a esta situação.

  3. Parabéns Nilson.
    Um excelente resumo da sociedade carioca que se alastra pelo Brasil chegando ao governo federal.
    Como alguém disse lá atrás, “não vai sobrar pedra sobre pedra”, “com stf, com tudo”.

  4. Esclarecedor este artigo.
    Explica a dominação exercida pela força bruta. Seja da polícia, da milícia, de traficantes ou dos novos traficantes evangélicos que destroem templos de Candomblé.
    Hoje, em uma brilhante palestra promovida pelo vereador petista Reymond, com José Genoino (que se apresentou forte e antenado), uma participante relatou que foi panfletar contra a reforma da previdência no terminal rodoviário de Niterói, próximo as barcas e que não foi bem recebida “parecia que ali estava 1/3 que apoia Bozo”.
    Mas não, ela esqueceu que dali saem os ônibus que também vão para Itaboraí, onde na semana foram encontrados 2 cemitérios com mais de 100 corpos de assassinados pela milícia.
    Naquela estação não tem 1/3 de bolsonaristas, tem 100% de dominados.

  5. Sem desmerecer a ótima análise, é preciso esclarecer que falar em “Regimentos baianos” é tentar forçar a História, dando-lhe ainda por cima um toque que pode ser entendido por muitos como pejorativo. Eram soldados de regimentos governamentais oriundos do sudeste, mas que lá no sertão baiano acamparam em um morro conhecido como Morro da Favela.

    Vejamos o que diz a Wikipédia:

    Cnidoscolus quercifolius (sin. C. phyllacanthus, anteriormente conhecida como Jatropha phyllacantha Müll. Arg.), popularmente chamada de favela, faveleira, faveleiro ou mandioca-brava[2], é uma planta da família das euforbiáceas. Trata-se de um arbusto dotado de espinhos e flores brancas, dispostas em cimeiras. O fruto é uma cápsula que contém sementes oleaginosas, semelhantes às sementes de fava. Daí, os nomes “favela”, “faveleiro” e “faveleira”. É endêmica do Brasil, distribuindo-se entre os estados do Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba, Alagoas, Sergipe, Bahia, Pernambuco, Piauí e São Paulo. No início do século XX, o termo “favela” passou a designar também qualquer ‘conjunto de habitações precárias’. Isto porque, durante a campanha de Canudos (1896-1897), as tropas governamentais se haviam instalado num morro daquela região, chamado da Favela (provavelmente por ali existir grande quantidade de faveleiras). De volta ao Rio de Janeiro, os soldados pediram licença ao Ministério da Guerra para se estabelecerem, com suas famílias, no alto do morro da Providência e passaram a chamá-lo “morro da Favela”, transferindo o nome do morro de Canudos, por lembrança ou por alguma semelhança que encontraram. O nome ‘favela’ acabaria por se generalizar, aplicando-se a qualquer conjunto de habitações populares precárias.

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