Bolsonaro: recuo tático ou debandada geral?

Depois de todos os tumultos, arruaças e ameaças produzidos por Bolsonaro e seus seguidores nas últimas semanas, onde ficamos afinal? Que balanço se pode fazer? Pergunta fácil de fazer, mas praticamente impossível de responder com segurança. Tento, mesmo assim, pois ela tem importância inegável.

Bolsonaro vinha se enfraquecendo desde o início do ano, como sabemos, e corria riscos jurídicos e políticos crescentes – seus filhos e ele mesmo. Resolveu dar uma demonstração de força no dia 7 de setembro. Conseguiu? Sim e não. Colocou multidões vociferantes na rua, em Brasília e, sobretudo, no Rio de Janeiro e em São Paulo. Apesar disso, e para decepção da sua base mais radical, resolveu recuar logo em seguida. Deu uma demonstração de força, mas logo depois uma de fraqueza?

Há quem sustente, mesmo no campo da oposição, que não houve sinal de fraqueza, que o recuo foi calculado, tático, bem pensado. Uma jogada de mestre? Haveria algum método nessa loucura toda?

Bem, tudo é possível. Mas ninguém me convence que o recurso a Michel Temer não tenha sido um sinal claro, até vergonhoso, de fraqueza do presidente. Em uma frase: Bolsonaro foi flagrado blefando com um par de setes. Na Avenida Paulista, discursou, exaltado, com palavras abertamente golpistas. Colheu tempestade. No dia seguinte, ficou claro o risco real e iminente de impeachment.

Bolsonaro não é corajoso. Sabendo que não tinha apoio para um golpe e diante das fortes reações no Supremo, no Congresso e na mídia, arrepiou carreira. Baixou o desespero. E, humilde, mandou um avião buscar Temer em São Paulo. Sem muita delonga, pediu condoídas desculpas, creditou as próprias palavras ao calor da hora e assinou uma carta pública de arrependimento. Com a intermediação do antecessor, ainda telefonou para o seu arqui-inimigo, o ministro Alexandre de Morais, para se explicar e oferecer votos de sincera amizade. Recuo tático ou rendição vergonhosa? Se isso tudo não caracteriza fraqueza, não estou entendendo mais nada.

A essa altura, ninguém acredita nesses recuos do presidente. Os ruídos de aceitação foram da mais óbvia e cristalina hipocrisia. Todos imaginam que ele voltará a aprontar, em grande escala, assim que puder e lhe parecer conveniente. É o que ele sabe fazer.

Claro está que o governo se isola cada vez mais. Perdeu o respeito e qualquer resquício de confiança. Desgastou-se também com a sua base, ainda que talvez não definitivamente.

Ressalte-se que as suas relações com o poder econômico se mostram cada vez mais difíceis. A deterioração marcada das perspectivas para a atividade, o emprego e a inflação ajudaram a consolidar a percepção de que pouco ou nada de positivo virá de Brasília. Até dois ou três meses, podia haver a esperança de uma recuperação significativa da economia brasileira, que favorecesse as chances de reeleição. Bolsonaro estaria no seu ponto mais baixo, mas a economia o salvaria.

Essa esperança se dissipou. Estagflação não elege ninguém. A economia cresce pouco, o desemprego continua e continuará elevado, a inflação vem surpreendendo negativamente, mês após mês. Em resposta à alta da inflação e das expectativas de inflação, o Banco Central apressa a elevação da taxa básica de juro, esvaziando a perspectiva de crescimento do PIB no período que vai daqui até a eleição presidencial. O quadro econômico internacional também não ajudará muito.

Assim, com atraso indesculpável, o chamado PIB nacional (ou boa parte dele) se distanciou do governo e dá sinais de que virou oposição, ainda que discreta, ainda que moderada. Já percebem – e este é um defeito realmente indesculpável – que Bolsonaro não serve nem mesmo para derrotar o ex-presidente Lula. No exterior, o presidente já é pária há muito tempo. E as essas opiniões estrangeiras influenciam muito a maneira como a turma da bufunfa local se posiciona em relação a Bolsonaro. Sentindo-se cada vez mais envergonhados perante seus pares estrangeiros, os bufunfeiros brasileiros tentam se dissociar do desastre em curso.

No entanto, temos que ser friamente realistas. Permanece o fato triste, lamentável e deprimente de que Bolsonaro ainda não chegou ao fim da linha. O 7 de setembro mostrou, afinal, que uma parte da sociedade não só apoia o governo, como está disposta a ir às ruas em sua defesa. Por enquanto, e veremos até quando, as pesquisas de opinião continuam apontando 25% ou um pouco menos de ótimo/bom para o presidente. Depois de tudo que aconteceu, 25% é uma enormidade – sinal inequívoco do tamanho do buraco em que nos encontramos.

Isso tem motivado muita gente boa a insistir na tese da frente ampla, de uma frente para além da esquerda e da centro esquerda, que se mobilize em defesa da democracia e contra o fascismo. Alguns já se prontificavam ao sacrifício de passear pela Paulista de braços dados como os moleques do MBL.

Mas vamos deixar o deboche de lado. A frente ampla é, sem dúvida, uma ótima ideia. Só poderíamos dispensá-la, se o governo federal estivesse realmente pela bola sete. Portanto, frente ampla, por favor!

Pequeno problema: a direita não-bolsonarista, congregada na busca por uma terceira via, tem verdadeiro horror da esquerda. Alguns dizem, mesmo na esquerda, que somos sectários demais. Pode até ser. Porém, o sectarismo da terceira via é muito mais acentuado. Ela nutre profunda repulsa pelo povo e os setores políticos que tentam representá-lo. Afinal, não vamos perder de vista que os “democratas” da terceira via foram os patrocinadores de um golpe parlamentar contra uma presidente democraticamente eleita. Não esqueceram nada, nada aprenderam. E sofrem horrores com a perspectiva da volta de Lula em 2023.

Fico por aqui. Não tenho mais palavras na minha boca. A verdade, leitor, é que o Brasil está acabando com a gente.

Continuo acreditando, como já escrevi nesta coluna, que o nosso futuro está logo ali. Mas este “logo ali” custa tanto a chegar!

***

Uma versão resumida deste artigo foi publicada na revista “Carta Capital” em 17 de setembro de 2021.O autor é titular da cátedra Celso Furtado do Colégio de Altos Estudos da UFRJ. Foi vice-presidente do Novo Banco de Desenvolvimento, estabelecido pelos BRICS em Xangai, de 2015 a 2017 e diretor executivo no FMI pelo Brasil e mais dez países em Washington, de 2007 a 2015. Lançou no final de 2019, pela editora LeYa, o livro O Brasil não cabe no quintal de ninguém: bastidores da vida de um economista brasileiro no FMI e nos BRICS e outros textos
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