Documento liberado pelo governo norte-americano e divulgado com estardalhaço no Brasil em maio do ano passado registra que o Presidente Ernesto Geisel, em 30 de abril de 1974, foi informado por três generais de que 104 pessoas — “elementos subversivos” — haviam sido executadas em repartições militares no ano anterior. Ciente, ele questionou os critérios, avocou à Presidência a decisão futura nesses casos e repassou a responsabilidade ao chefe do Serviço Nacional de Informações, General João Batista Figueiredo. A conclusão que o responsável pela divulgação e os principais órgãos de mídia extraíram traduz-se em manchetes como “Geisel ordenou a execução sumária de presos políticos”.
A informação inicial é correta. No entanto, a versão proposta não só ignora o contexto como atende a objetivos que se devem lastrear em interesses políticos de agora, não daquela época.
Em abril de 1974, ainda havia combates no teatro da guerrilha do Araguaia, contra a qual se desfechava operação de extermínio secreta e extralegal, no quadro da guerra fria; estava em pleno curso a Operação Condor, aliança de órgãos de Estado sul-americanas coordenada pela CIA contra a “infiltração comunista” — em que a palavra “comunista” tem sentido elástico: inclui, quando conveniente, católicos progressistas, trabalhistas, socialistas ou intelectuais divergentes.
Geisel era tão anticomunista quanto qualquer outro militar de seu tempo; mas era pessoa sensata. Não poderia, naquele momento, agir de outra forma por várias razões, a primeira das quais é que decisões com tal gravidade, em ditaduras corporativas como as dos governos militares brasileiros dependem de concordância das lideranças da corporação, isto é, no caso, dos generais da ativa em comando.
O presidente temia, no entanto, que a caça aos comunistas transformasse o Brasil em colônia dos Estados Unidos (como agora acontece); priorizava o desenvolvimento estimulado e liderado pelo Estado e acreditava que, com a liquidação da guerrilha do Araguaia (que se configuraria apenas em outubro de 1974, quando foi executada a última guerrilheira, Walkiria Afonso Costa, em Xambioá, Tocantins), o esforço deveria se concentrar na ampliação da base industrial e na redemocratização.
Foi o que disse, na abertura do ano legislativo de 1975, em mensagem ao Congresso, ao apresentar sua politica de “abertura lenta e gradual” do regime. O então comandante do II Exército (São Paulo), Ednardo d’Ávila Melo, em ordem do dia, no aniversário do golpe de 1964, um mês depois, proclamou que o fim da “ameaça comunista”, pressuposto na fala presidencial, era “uma balela”.
Tornava-se visível o conflito até então escamoteado entre os segmentos da tropa americanófilos, radicais e violentos — a “linha dura” –, e lideranças obedientes à tradição legalista, moderadamente estatista e nacionalista do Exército incorporada por Geisel.
Iniciou-se um jogo de xadrez na disposição dos comandos de tropas “legalistas” e “radicais”, organizados, esses, em torno da candidatura à sucessão presidencial do Ministro do Exército, General Sylvio Frota. Os principais lances envolveram unidades de São Paulo — Campinas, Caçapava etc. — que, como se comprovara no golpe de 1964, são cruciais para a decisão de qualquer confronto. Geisel, na Presidência, cuidou de atribuir esses comandos a generais de sua confiança.
Onze dias após o pronunciamento ao Congresso, em abril de 1975, já com condições políticas, o Presidente proibiu, reservadamente, execuções em órgãos militares — e a notícia se espalhou. Em agosto, noticiou-se, com repercussão mínima, que o tenente da Polícia Militar de São Paulo José Ferreira de Almeida se suicidara na cadeia do DOI-Codi, subordinada ao II Exército.
Em 25 de outubro, Vladimir Herzog, diretor de jornalismo da TV Cultura, foi assassinado na mesma repartição e a versão oficial voltou a ser o auto-enforcamento. A repercussão foi enorme. Geisel ordenou a abertura de inquérito, contrariando o comando paulista. A conclusão foi, naturalmente, inócua, mas criara-se situação insustentável.
Em 17 de janeiro de 1976, Manuel Fiel Filho, líder operário católico, morreu no DOI-Codi. Outro suposto suicídio. Aí, a taça transbordou: Geisel prontamente demitiu o General Ednardo, como faria, em 12 de outubro de 1977, com o Ministro Sylvio Frota.
Rompida com o governo, a linha dura passou a realizar ações subversivas, a mais ambiciosa das quais, a explosão de um auditório lotado no Riocentro, em 30 de abril de 1981, fracassou por sorte de milhares de pessoas e azar dos que a iriam realizar: a bomba explodiu no colo de um deles.
10 respostas
Geisel era o general mais democrático do exército. Esse general vice presidente que posa de democrata não serve para amarrar os coturnos dos Irmãos Geisel.
Vejam o documentário “Missão 115”. Eles estão até hoje por aí. Boçal Nato é, de certa forma, descendente da turma do Sylvio Frota.
Excelente. Quando se faz colocações como estas, é comum que a turma que não lê, que não se instrui caia de pau. Quando veio a público o teor desse documento da CIA ao governo americano, vozes nem sempre isentas se fizeram ouvir, execrando Geisel, mais em favor do que agora vemos acontecer do que no sentido de apontar um real comprometimento com a indústria da morte, então vigente, por parte deste. Geisel não era esse canalha sanguinário que, recentemente, quiseram pintar. Preso à ideologia da época, mas, averso às condutas da turma do Frota e tendo de se manter e ao seu grupo de confiança, até que pudesse levar a transição a termo, fez o que foi possível, então, com habilidade, com energia e com a retidão que lhe eram características. Se houve uma Constituição Cidadã, se houve uma passagem, mesmo que não ideal, à democracia, isto começou lá atrás, com Geisel, que se manteve fiel à própria consciência e conduziu todo o processo, até conseguir, evitando ser derrubado ou morto, neutralizar Sylvio Frota. que ainda assim, insistiu, por muito tempo nos seus métodos e estimulando sua matilha. Seria bom, mesmo que não se goste de Geisel, que o Brasil o conhecesse um pouco melhor.
Aonde será que se se esconde essa tradição legalista, estatista e nacionalistas entre nossos militares para não dizer entre nossos empresários. Buscá-los nos livros de história já não é uma tarefa simples o que dizer na nossa realidade corrente. As vezes me inclino a dizer que mais que uma realidade essa “busca” revela mais um desejo quase como uma miragem onde vemos o que queremos. Confundimos os conceitos de Segurança Nacional dos anos 70 com o pensamento cepalista dos anos 60. Esquecemos de Campos, Bulhões, Simonsen, Delfim et caterva e transformamos Geisel em um devotado herói do desenvolvimentismo.
Todos os indicios dessa trama,reside hoje em dia,no COLAPSO DO IMPERIALISMO FINANCEIRO,já que aos AGIOTAS HISTORICOS,que outrora extorquiam as empresas produtivas,nos nossos dias,em faze de extinção,pois o CONSUMIDOR SUMIU,restou pra eles,os AGIOTAS,os TESOUROS DOS PAÍSES CAPITALISTAS,e como estes tesouros,eram formados pelos impostos sobre o consumo,hoje em extinção,resta à AGIOTÁGEM ,rezar pra seus deuses,ressucitarem.
Geisel foi abordado por três generais da Linha Dura, entre eles Figueiredo, sobre se ele concordava ou não concordava com a continuação das execuções sumárias de certos presos políticos. Se ele dissesse que sim, estaria se dobrando à Linha Dura e coonestando um crime que ele dizia abominar. Se ele dissesse que não, estaria desafiando abertamente a Linha Dura, correndo o risco de ser afastado por campanhas difamatórias. É preciso ressaltar que as mortes ocorriam sem que houvesse sobre elas um responsável oficial. Geisel então disse aos generais que poderia concordar com a continuação, desde que constasse em registro as circunstâncias das mortes e a assinatura de quem as ordenou, no caso a assinatura do General Figueiredo, que ficaria doravante responsável por tais execuções. Claro que as execuções pararam imediatamente. A Linha Dura teve de engolir Geisel, mas dali por diante ele foi taxado de comunista. Até hoje é tido por comunista pelos remanescentes da Linha Dura.
Graciosamente chamado de Melancia, Verde por fora e vermelho por dentro.
Cínicos.
O Brasil se tornou o primeiro país a reconhecer a independência de Angola durante o governo Geisel. Deu – se na ocasião, por vias transversas, uma tão improvável quanto jamais conscientizada aliança entre Fidel Castro e Ernesto Geisel. Ambos concorreram, cada qual em sua raia específica, para o triunfo na África de matiz ibérica dos valores de nossa Latinidade Afro Ameríndia. Valores que se afirmaram sobre a mística da superioridade do imperialismo branco, mística essa representada no teatro de operações angolano pelas forças invasoras de sulafricanos de origem predominantemente holandesa. A vitória cubana na batalha de Cuito Cuanavale, em 1988, representou um eco tardio do triunfo brasileiro nos Guararapes em 1649. Em ambos os casos, os holandeses foram batidos pelos representantes de uma latinidade mestiça. O anticomunismo de Geisel e o socialismo de Castro tiveram as suas diferenças colocadas em suspenso diante do objetivo transcendente maior de fazer triunfar a missão racial comum aos povos da Pátria Grande. Cumpre – nos, agora, abater o imperialismo anglo – saxão. Essa é a tarefa para a qual as grandes lideranças da América Latina nos convoca.
Ponto para Nílson Lage, por situar os fatos de maneira clara. Salve o bom jornalismo!
Parabéns ao Tijolaço por recuperar a imagem do grande Gal. Geisel. Não era um facínora . Era um nacionalista. Conduziu de forma brilhante o fim da ditadura.