Nílson Lage, jornalismo e resistência, morre aos 84, em SC

Nilson Lage, meu professor, minha referência (e de milhares de jornalistas que foram seus colegas e alunos) e colaborador deste blog, para meu imenso orgulho, morreu ontem em Santa Catarina.

Homem austero, reservado, quase nenhum de nós sabia de seu drama, enfrentando, há dois anos, um câncer.

Nas salas da UFRJ, nos anos 70, era severo, mais talvez o mais dedicado a fazer daqueles meninos e meninas jornalistas de verdade e pessoas de caráter e dever.

Como ele próprio foi, garoto pobre, que acabou alcançando a prestigiadíssima Faculdade Nacional de Medicina que deixou para viver o jornalismo transformador do Diário Carioca, nos anos 50, ao lado de figuras históricas como Pompeu de Souza, Luiz Paulistano, Armando Nogueira, Evandro Carlos de Andrade, Ferreira Gullar, José Ramos Tinhorão. Nelson Pereira dos Santos e Janio de Freitas.

Do que colheu de aprendizado , de prática, desenvolveu teoria e devolveu-as ao mundo em diversos livros: Ideologia e Técnica da Notícia (1979); Estrutura da Notícia (1987); Linguagem Jornalística (1987); Controle de Opinião Pública (1998); A Reportagem: teoria e técnica da pesquisa jornalística (2001) e Teoria e Técnica do Texto Jornalístico (2005).

Nos últimos tempos era bem raro, mas sempre trocamos ideias (na maioria, dele as recolhi) sobre textos e visões de mundo.

Mundo e eu o perdemos, ontem, aos 84 anos.

Perde mais minha profissão, coitada, já tão maltratada nestes tempos em que se pensa tão pouco quanto muito se escreve sobre frivolidades que caberiam na Revista do Rádio quando Nilson era um jovem jornalista.

Reproduzo um texto seu, aqui publicado, uma destas coisas cada vez mais raras de ler em tempos em que falam tanto de gadgets tecnológicos e bobagens comportamentais que nos exportam, inúteis como os ioiôs que despejaram aqui, para empurram “matéria plástica” e comerem os saldos comerciais que o Brasil acumulara com a Grande Guerra.

Aquilo que Nilson, um brasileiro, tanto criticava: um identitarismo estreito e torto, que nos eclipsa a grande identidade (e a igualdade) de sermos todos brasileiros.

Intolerável é a intolerância

Nilson Lage, 2017

Nasci em uma nação formada por três raças tristes às vezes, como agora; de outras vezes, alegres.

Amei negras e índias, menos brancas; nenhuma asiática por falta de oportunidade. O melhor amigo que tive, a quem devo carinho de irmão, é judeu. Estudei russo, embora tenha esquecido a língua; também inglês, francês, espanhol, latim, grego… Salivo com todas as culinárias e culturas humanas, até as que não conheço.

Descendo da mais cruel das gentes, as da Europa, aquela ponta miserável da Eurásia de onde partiram os assassinos de povos e devoradores de civilizações. Que bom que ao menos uma vovó indígena me restou na ancestralidade! Mas não culpo europeu algum de hoje – ou norte-americano, que é o europeu em casa nova – porque não creio na herança das culpas nem na responsabilidade das partes no desempenho do todo.

Acredito que, se não houvesse contenção social, a tendência heterossexual seria dominante, mas não a única, nem na sociedade nem na vida das pessoas – porque ao sexo biológico, já em si duvidoso, acrescenta-se a representação simbólica na linguagem, que espelha vida e tece estranhas relações entre intimidade e afeto.

Respeito as prostitutas, tanto as que se enquadram no vitimismo do discurso convencional quanto as vocacionadas e animadas na carreira que partilham com o mesmo estoicismo das meninas que, pelo avesso, se guardam para um “bom partido”. A vida é um jogo e fazem sua aposta.

A pornografia, ao contrário do que pretendem os moralistas, existe para adolescentes, os na idade própria e os que prosseguem sendo. Os demais acham apenas chato, se não for belo, e desenvolvem seus próprios métodos.

Tenho pena dos miseráveis, mas também dos muito ricos, que juntam fortunas de que não precisam, esmagando para isso tanto gente, perdem a noção do valor das coisas e, afinal, criam tolos armados de privilégios, com que tive que competir algumas vezes.

Desdenho desses farsantes que usam o nome de Jesus para tomar dinheiro do salário dos pobres e recorrem sempre ao Antigo Testamento, que é a história de um povo onde tudo acontece, porque não encontram o apoio de que precisam nos relatos do Cristo.

Sequer odeio os traficantes, porque sei que a droga, como muitas vezes a fé, é instrumento de controle social manipulado por interesses que não habitam morros nem correm riscos.

Sei que a luta de classes é o motor da História, mas não acredito que o ódio seja o melhor juízo na condução das batalhas.

É quando a raiva passa que a razão impõe o justo.

A única coisa que não se pode tolerar, que impede a solução dos conflitos, é a intolerância.

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