O vídeo, que viralizou nas redes sociais, onde o jovem Kaike Sofredine (quem não viu, veja ao final) enfrenta um segurança de shopping baiano para que um menino pobre possa comer uma refeição, pagando por ele, faz mais do que mostrar como são perversos os preconceitos, a exclusão e o apartheid informal que se espalham pelo “Brasil que importa”, formado aí por uns 40% de nossa população.
Afinal, se até no estado mais negro do Brasil, a Bahia, isso acontece, ninguém vai ser hipócrita de dizer que, de original, nele, estão apenas o fato de que foi filmado e que um jovem, negro também, tenha tomado a defesa do guri. Tão incomum que ele o faz, senão solitariamente, apenas com a solidariedade verbal de alguns – e só alguns – dos frequentadores do local.
Mais interessante é a postura do “segurança” – ou dos “seguranças” – que o vem cercar diante da”ocorrência” e a do silêncio da maioria dos espectadores da cena.
Os espaços urbanos são definidos e definem as relações de convívio. A progressiva substituição do burburinho do comércio de rua e da anarquia dos mercados municipais pelos ambientes fechados e “seguros” dos shoppings, um processo que começou timidamente por volta de 1970 e que, há um quarto de século tornou-se quase universal, reflete esta segmentação e valores dominantes do Brasil.
Se não pudemos – ou se jamais pretendemos – criar uma sociedade minimamente igualitária, temos de criar, então, as “ilhas de tranquilidade” que nos permitam fruir do que temos em meio aos que quase nada têm. E lá se vão os muros, os condomínios, as cercas de arame, cada vez mais farpadas e eletrificadas, os vidros fumês, as películas escuras, as blindagens e os – em número cada vez maior – “seguranças”, como aquele infeliz que quer impedir o garoto de comer e, sendo um produto de uma ideologia e de um comportamento que a encarna, acaba sendo o “culpado” pela cena deprimente.
É quase inevitável a metáfora que o episódio do shopping faz do Brasil.
A maioria da população – mostram as pesquisas eleitorais – quer pagar para que todos tenham o direito de comer e que o país seja acessível a todos nos seus espaços reais e simbólicos de felicidade (shoppings, praças, praias, aeroportos) mas a “gerência” e a classe média insistem em imaginar que isso se refira apenas aos que têm dinheiro para serem aceitos como “clientes”.
Para manter as coisas assim, querem, aceitam e até amam o que nós, jovens dos anos 70, detestávamos e muitos, hoje, sessentões, também glorificamos e queremos para nossos filhos e netos: a primazia da “segurança”.
O guarda em cada esquina, o detector de metais, o documento no porteiro, a revista corporal no espetáculo que frequentamos, e, claro, os brutamontes socados em camisas e paletós impecáveis de justos nos shoppings refrigerados.
Mas a pobreza é insidiosa e se infiltra como a água, mesmo nos compartimentos que se julgam estanques à miséria. Neste fim de semana, andando numa rua de Ipanema, não se caminhava 20 metros sem dar com um pedinte ou com os cobertores rasgados de quem deitava nas calçadas.
Quase todos os dias os “seguranças” sociais os tiram, quase todos os dias, eles e outros em cada vez maior quantidade, voltam.
Eles não vão comer, senão pela caridade, não vão dormir, senão na pedra fria, não vão ter onde satisfazer suas mais básicas necessidades humanas senão quando e se aparecerem pessoas que se apiedem e ainda lhes sejam capazes de reconhecer como seres humanos.
Os defensores da “intervenção militar” para trazer de novo a “ordem” ao shopping Brasil querem os nossos militares para fazer o papel daquele infeliz “segurança” do vídeo, enquanto os gerentes, de toga, cuidam de expulsar da política os que defendem o direito de que todos os meninos possam comer, nem que tenhamos de pagar por eles.
32 respostas
Brito, como explicar uma cena dessas a um amigo estrangeiro que está no Brasil há 2 meses, num intercâmbio que irá durar 1 ano? Ele me perguntou e eu, vergonhosamente, não consegui explicar.
Não tem como explicar, Paulo. Diga a ele apenas que a atitude desse Kaike mostrou que, ao menos, há um fio de esperança. Diga que muitos choraram ao ver esse video, um deles, este que lhe responde. O Kaike é um daqueles que não se rendem, diferente dos omissos. O que me toca verdadeiramente é a enorme dúvida : Daqui do meu conforto eu lhe digo que se estivesse lá seria tão corajoso quanto o defensor do faminto. Se lá estivesse talvez me incluísse na turma dos omissos. E a resposta a isso é o que realmente vai orientar nosso futuro.
Oxe(como bom baiano, que sou). Eu moro no exterior e eu ESCANCARO as mazelas do Brasil. O Brasil que faz isso retratado nesta matéria, NAO é o meu Brasil. Entao, eu ESCANCARO estas coisas, que é exatamente, para constrangir o Brazil deles. Exponho as visceras deste apartheid, sem a menor vergonha. Como disse, este NAO é o meu Brasil.
Desculpa a intromissão,mas,faz o seguinte, pergunta a seu amigo o que tem de pior ou que já aconteceu de pior no país dele, aí você fala, pois então, isso é o de pior que está tendo no meu país na verdade sempre teve.Apartheid não declarado.
Pedro Cardoso tem razão. Enquanto não resolvermos a questão racial no Brasil, viveremos esse apartheid modelo 1870 pelos séculos dos séculos. Ou até explodir a Grande Revolução.
Isso é algo que deve ser levado à Comissão de direitos humanos e o Shopping, assim como o segurançazinho gordo e branco devem ser processados por discriminação social e racismo!
Texto impecável. Mas é um problema resolvido quando se pede de presente de aniversário a doação de alimentos para alguma entidade. Aplaca a consciência e fica bem na fita com a turminha.
Por isso odeio os dirigentes bonzinhos de Centros espíritas, Rotary e Lions Club!
quando recebo convites com esse tipo de presente nem apareço
Desculpe-me, Maria, mas você está enganada quanto às pessoas que, em seus aniversários, pedem gêneros alimentícios em vez de presentes. Fazem isso com o simples objetivo de ajudar alguém a comer, nem que seja por um dia. Mas é o que eles podem fazer; pior seria não fazer nada.
pode ser que vc tenha razão. mas a maioria dos que conheço é gente contra o bolsa família, cotas e que tais. é a turma do ensinar a pescar. Atualmente, frequentemente tenho comprado quentinhas pra lavadores/as de carro, perto da minha casa. Surgiram 3 ou 4 quiosques vendendo comida, no estacionamento. Não via isso há muito tempo. Caridade resolve o problema imediato e, como dizia Betinho, quem tem fome não pode esperar. Políticas públicas dispensam a caridade, pelo menos em larga escala e muita gente não aguenta isso.
Caridade pública é sabão-lixa que lava qualquer pecado. Por isso essa gente precisa tanto da miséria – vide as ambulâncias da Xuxa ou as latas-velhas huckianas.
“Mas, quando tu deres esmola, não saiba a tua mão esquerda o que faz a tua direita”(Mt 6:3).
Concordo Evair. São os canalhas mais hipócritas que conhecem. “Fazem” caridade com o chapéu alheio e gostam de posar de “superiores”. Se dizem “espíritos de luz” mas não passam de espíritos de porco.
A classe média acuada e manipulada pela massificação da violência, habilmente em curso na programação das TVs, tenta criar uma bolha de proteção, transformando o Brasil em um grande e seguro shopping onde caiba 30% da população.
Dos outros 70% o Estado da Segurança cuida.
#BrasilInfelizApequenadoERestritivo
Mas o segurançazinho branco faz o papel que lhe cabe de feitor, capataz e capitão do mato da elite!
O pior é que o segurança nem mesmo é branco. No Brasil não há brancos na exata acepção do termo. Somos mestiços, até quem tem olhos azuis. Esse segurança apenas não tem consciência das coisas…
Na Africa do Sul do apartheid, a segregação pelo menos era explícita, enquanto no Brasil o senhor simpático sentado a seu lado num bar pode ser um fascista ferrenho, defensor da ditadura e da exclusão de direitos dos pobres e negros. E é bom dizer; sempre foi assim, nada mudou, somente aflorou com o golpe.
Se mede o grau de incivilidade de uma sociedade, quando se observa Lula na cadeia, um verme como bolsonaro disputando a presidência e outro verme semelhante como temer a ocupando por um golpe criminoso.
Caso perdido – game over.
#LulaLivre
A mesma coisa aconteceu comigo num restaurante no interior do Rio Grande do Sul. Armei o maior barraco, mas a criança entrou e almoçou, com direito a refrigerante. Paguei a conta. Só não chamei a polícia porque eles recuaram da decisão de não deixar a criança entrar. É difícil. A vontade que dá é de colocar fogo em tudo.
Reuniram três seguranças para tentar impedir uma criança de comer! Parabéns ao jovem que defendeu o direito básico de um ser humano, inscrito na Carta da ONU.
Enquanto vemos ocorrer esse lamentável caso no Shopping da Bahia em que um garoto pobre é impedido de comer no local por um segurança, mesmo tendo uma pessoa pagando pela sua comida, vejam essa festa luxuosa propiciada pela AJUFE na posse de seu atual presidente, sr. Fernando Marcelo Mendes. “Muitos ficaram se perguntando se realmente era necessário tanto esbanjamento diante do tamanho das crises ética, econômica e política que o país enfrenta. Para os juízes, porém, o mundo real está muito distante. A corte está imune ao desemprego, à falta de salário, a um sistema de saúde ineficiente”. http://blogs.correiobraziliense.com.br/vicente/na-corte-dos-juizes-nao-ha-economia-so-esbanjamento/
Triste retrato de nosso país….
Todos os aspectos que o texto aponta como incompreensíveis ou chocantes numa sociedade, na verdade já estão escancarados como regra pela maioria daqueles devidamente incluídos. A mim isso também se manifestou como preocupação, todavia o que saltou aos meus olhos como muito positivo foi o comprometimento do rapaz que enfrenta o preconceito e os guardas. Sua segurança, confiança na sua ação sem sequer levantara voz. Eu teria gritado. Preciso aprender com ele.
Parabéns ao rapaz que defendeu a criança faria o mesmo.
O Bicho
(Manoel Bandeira)
Vi ontem um bicho
Na imundície do pátio
Catando comida entre os detritos.
Quando achava alguma coisa,
Não examinava nem cheirava:
Engolia com voracidade.
O bicho não era um cão,
Não era um gato,
Não era um rato.
O bicho, meu Deus, era um homem.
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Gostaria de saber como um cidadão, submetido a um salário que, provavelmente, não garante dignidade a ele e sua família seja transformado em um “cão de guarda” daquele que o oprime. Perdemos aos poucos os valores que nos fazem viver em uma sociedade minimamente saudável.
Esse rapaz precisa ser entrevistado, se possível, se possível junto com o garoto!…Vendo o vídeo, eu fiquei louco pra me transportar para aquele momento!”…Espero que, das próximas vezes, mas gente interfira!…O guarda mostrou apenas ser um idiota racista!…
Vergonha. Mais uma no “quero meu país de volta”.
Caro Brito,
Na mesma Salvador, os ambulantes nos ônibus são tantos que entram em dois ou três. De forma organizada, enquanto um anuncia seu produto, os demais aguardam silenciosamente. No país do bico, temos agora senha para ambulante. Triste Brasil!
Sou policial e já comprei e paguei lanche para jovens de rua em lanchonete de shoping e se algum gerente se opor dou voz de priisão e conduzo a DEPOL por crime de racismo institucional.
Imaginem que se esses Ministros do Supremo Tribunal Federal tivessem metade, só a metade da coragem desse jovem para enfrentar o Sistema, o Brasil seria outro, mas agasalhados em seus pomposos cargos se acovardam e defendem seus honorários com unhas e dentes, como defende aquele pobre segurança, o seu ínfimo salário. Apenas capitães do Mato.
Esse jovem Kaike Sofredine deu um exemplo de como se trata um ser humano, não interessa se é pobre ou se é negro. Parabéns, rapaz!