Governador,
Desculpe chamá-lo assim, vício de 20 anos de convivência que não passa ao sabê-lo, agora, desvestido de todas estas pequenas honras terrenas.
Hoje tive uma grande vontade de conversar com o senhor, neste Dia da Consciência Negra que começou a nascer aqui no Rio, quando se fez a estátua de Zumbi dos Palmares, não por acaso ali na Avenida Presidente Vargas, rua e presidente que foram o centro de nossa história moderna.
Recordo, não sei se ainda lembra destas pequenezas, que vândalos a atacaram e tentaram depredar na véspera de sua inauguração, que aconteceu ainda assim, com Darcy Ribeiro exultante pelo reparo histórico de um herói negro da liberdade.
Pouca gente sabe, mas não era seu primeiro ato de resgate da causa negra.
Mas eu sei: a miúda pensão do governo do Rio Grande do Sul a João Cândido, o Almirante Negro, que liderou a Revolta da Chibata, protestando contra o chicoteamento dos marinheiros brasileiros, em pleno Século 20. Sei também que havia uma medalha para ele, que não pôde ser entregue, pois almirantes, assim com letra minúscula mesmo, de farda branca e alma sombria, ameaçaram uma sublevação: afinal, onde já se viu condecorar um marujo insurreto, ainda que em nome da dignidade humana?
(Talvez não tenha chegado aí a notícia de que Lula mandou fazer-lhe uma estátua, também junto a Vargas, no Palácio do Catete. o do 24 de agosto trágico, que os almirantes netos daqueles almirantes fizeram que fizeram para tirar dali e levaram, bobos, o João para junto do mar que ele amava e que o sustentou por tantos anos, vendendo peixes, ali na Praça XV)
Mas não é destes reparos corajosos à história dos negros do nosso país que desejo desabafar com o senhor, algo em que sou tão econômico, porque nossa convivência não foi de lamentos, mas de desafios e lutas.
Nem é da morte deste seu conterrâneo, ontem, num mercado do Rio Grande, nem daquele músico, o Evaldo Rosa, fuzilado por militares quando dirigia seu modesto carro, em Guadalupe, com sua família, na época de mais uma intervenção militar no Rio de Janeiro.
Quero dar-lhe um abraço emocionado por ter feito o que ninguém, ou quase ninguém, teve a coragem – e não têm até hoje – de dizer que a opressão racista, no Brasil, acontece, essencialmente, com uma máquina policial que – pela covardia ou cumplicidade dos governantes e pelo apoio que sempre recebeu da mídia e das elites, com a parte da classe média que ela leva a reboque de seus valores – oprime e mata negros.
Vi de perto o quanto isso lhe custou. “Brizola protege os bandidos”, diziam. Vi nascer a história de que “Brizola não deixa a polícia subir morro”, quando o senhor determinou a detenção de dois policiais militares que mataram uma menina de oito anos, numa favela da Zona Sul, por atirarem a esmo enquanto perseguiam alguém que teria roubado um cordão ou uma bolsa. Um cordão ou uma bolsa, pela vida de uma menina que cometia o crime de estar sentada à porta de seu modesto barraco!
E quando começou esta história, em lugar de gaguejar um “não é bem assim”, lembro de sua reação desafiadora, perguntando se num prédio de Ipanema valia a mesma regra de meter a bota na porta de um barraco à procura de drogas que se usava na favela.
É que lá valia a visão do verso de Caetano: ver do alto a fila de soldados, quase todos pretos/ dando porrada na nuca de malandros pretos (assim o diz o general Mourão)/ De ladrões mulatos e outros quase brancos/ Tratados como pretos/ Só pra mostrar aos outros quase pretos (E são quase todos pretos)/ Como é que pretos, pobres e mulatos/ E quase brancos quase pretos de tão pobres são tratados.
Quando entrei no seu PDT (Deus me perdoe o que fizeram dele, querendo polícia no governo) eu próprio achava meio maluco termos um movimento negro no partido. Onde já se viu, pensava o jovem que se achava marxista, questão racial se a luta era de classe? E que maluquice de “cotas antes das cotas” que o partido praticava, quase 40 anos atrás?
Demorei a entender, porque de onde veio minha família, do IAPI de Realengo, ser trabalhador já nos igualava a todos, ao menos aparentemente. Sebastião e sua mulher, da qual nem recordo o nome de tanto que eram chamados de compadre e comadre, padrinhos de minha mãe, brilhavam em suas peles negras e seu padrão de vida superior ao de meu avô, com o qual pintava paredes no início dos anos 30.
Como demorei a entender que a questão da segurança pública inseparável dos direitos humanos era a maior ação afirmativa que se podia fazer. Porque os “pretos, pobres e mulatos / E quase brancos quase pretos de tão pobres são tratados” com uma brutalidade que, quando não mata o corpo – e mata muitos corpos – mata a alma, porque gera, quando não submissão, uma dor que da qual nada de bom pode brotar.
Já não falta tanto para que lhe faça companhia, governador, e espero levar notícias melhores desta terra, que a gente vai amar mesmo quando não tiver terra senão acima de nós. Mas hoje estou preocupado em ajudar a garotada – boa, generosa e fogosa – a ajustar a mira e compreender que a luta antirracista é uma luta contra a desigualdade.
O racismo é injustiça e a injustiça é racista.