Hoje, vou escrever primordialmente para economistas, mas espero que o texto seja acessível, ao menos em parte, também para outros. Quero tratar de uma controvérsia entre os economistas heterodoxos. São basicamente dois grupos. De um lado da controvérsia, os mais tradicionais, para quem os déficits e a dívida pública são preocupações relevantes. De outro, os mais inovadores e extremistas, para quem isso não passa, essencialmente, de um mito ortodoxo, derivado de uma má compreensão da economia. O primeiro grupo é constituído de keynesianos convencionais. O segundo é influenciado pela Teoria Monetária Moderna, que surgiu há alguns anos nos EUA e teve grande repercussão lá e em outros países. A controvérsia é complexa; não vou abordar senão alguns de seus aspectos.
Uma advertência preliminar
Antes de entrar no assunto, uma breve advertência. Trata-se, leitor, de uma briga dentro da mesma família. Bem sei que essas brigas tendem a ser as piores, podendo tornar-se realmente fratricidas. Por isso mesmo, cabe moderar os ânimos. Tanto mais que a economia está longe, muito longe de ser uma ciência exata. Nem sei se existe alguma ciência “exata”. Seja como for, a verdade é que a economia prima por inexatidão. Nós, economistas, não temos, a rigor, certeza de nada. Von Mises chegou a dizer, tongue in cheek, que a única coisa inquestionável em economia seriam as identidades contábeis.
Além disso, não podemos esquecer que o quadro político nacional é muito delicado. Não cabe alimentar lutas internas no campo progressista capazes de nos desviar do essencial, que é combater o bolsonarismo e o ideário econômico dito neoliberal, mas na realidade paleoliberal, a ele associado.
Há um fator na conjuntura brasileira que exacerba a controvérsia teórica entre heterodoxos: a aproximação de uma possível eleição de Lula. E a questão central passa a ser: como deve ser a política econômica e, em especial, a política fiscal, de gastos e tributação, desse possível futuro governo?
O que direi na sequência é controvertido. Ofereço essas reflexões como modesta contribuição a um debate intrincado, que vai continuar por algum tempo.
A heterodoxia extremada
Vou me dedicar ao grupo mais interessante – o dos heterodoxos extremados. O que eles dizem, com algumas poucas qualificações, é que não há limite efetivo para o gasto público quando o Estado emite uma moeda soberana e não tem dívida expressiva denominada em moeda estrangeira. Nesse caso, todas (ou quase todas) as dívidas acumuladas pelo setor público são pagas em uma moeda que o Estado emite e controla. Por isso, a ideia de que a dívida possa se tornar impagável ou insustentável é essencialmente uma lenda ortodoxa. Não há que se preocupar com o financiamento do gasto público e sim, primordialmente, com a natureza do gasto. O argumento não vale, destaca-se, para economias dolarizadas ou com um governo fortemente endividado em moeda externa.
Talvez o parágrafo anterior, uma apertada síntese, como dizem os advogados, não faça justiça ao argumento. Peço que me corrijam, se for o caso, e prossigo.
Feita a ressalva de que eu possa estar fazendo alguma caricatura, diria que o argumento extremado, embora instigante, não me parece inteiramente correto. Veja bem, leitor, não porque seja extremado. Brasileiro tem (ou tinha) mania de se apresentar como moderado, equilibrado etc. e tem, regra geral, preconceito contra extremismos. Mas isso é bobagem. Se a verdade está no extremo, vamos a ele! O problema é que, nesse caso, não está.
A Teoria Monetária Moderna tem dado importante contribuição para desbancar, nos EUA e depois em outras partes, as simplificações da ortodoxia econômica, que pode ser tão poderosa quanto ignorante. As décadas passaram, mas devo dizer que continuo me identificando, temperamentalmente, com os iconoclastas. E vou mais longe: acho francamente ridícula a corrida entre alguns economistas progressistas para se mostrarem “responsáveis” e “sérios”, endossando, no todo ou em parte, os preconceitos econômicos mais rasos do mercado e da turma da bufunfa.
Relevância dos déficits e da dívida do setor público
Mesmo assim, leitor, não vejo como dar razão completa à heterodoxia extremada. Seria uma beleza se não houvesse restrição fiscal e se bastasse nos livrarmos de um ideário superado e pernicioso. Infelizmente, não é bem assim. Os déficits e a dívida do setor público não são irrelevantes, ou de pouca relevância, mesmo em economias com moeda própria e governos não endividados em moeda estrangeira.
Vejamos por quê. A razão menos controvertida, presente já em Abba Lerner, um dos principais antepassados teóricos da Teoria Monetária Moderna, é a restrição de capacidade produtiva. Uma expansão do déficit fiscal, que reflita uma política de ampliação do gasto ou de diminuição da carga tributária, pode esbarrar em limitações de oferta agregada quando é alto o grau pré-existente de utilização da capacidade existente. E, note-se – a restrição de capacidade pode ser relevante mesmo que o grau médio de ociosidade seja elevado. Uma dispersão em torno dessa média pode fazer com que gargalos e pressões setoriais de demanda sobre preços e salários surjam bem antes da economia se aproximar do pleno emprego da mão de obra, das instalações produtivas e dos demais fatores de produção.
Pode-se indagar em contra-argumento: mas isso vale mesmo que a expansão do gasto governamental ou a diminuição da receita tributária resultem em aumento da capacidade produtiva da economia, via maior investimento público ou estímulos ao investimento privado? Mesmo assim. A oferta responde mais lentamente do que a demanda agregada. Esgotada a capacidade pré-existente, ou já com a aproximação desse limite, instala-se um quadro de excesso de demanda, com consequências em termos de inflação mais alta e desequilíbrios no balanço de pagamentos em transações correntes.
O desequilíbrio de balanço de pagamentos nos conduz a uma segunda razão para não aceitar a heterodoxia extremada. Quando o Estado não é emissor de moeda de liquidez internacional, a economia fica submetida, potencialmente, a uma restrição externa. O aspecto central aqui não é nem a conta corrente do balanço de pagamentos, mas a movimentação de capitais. Se a política fiscal expansiva provocar a percepção nos detentores do capital de que a dívida pública cresce de maneira insustentável, tende a haver pressão sobre a taxa de câmbio e/ou as reservas internacionais, com impactos adversos na inflação, nas taxas de juro e em outros aspectos da economia. Note-se que, na ausência de controles efetivos de capital, as reações relevantes se estendem também aos detentores domésticos de capital. Note-se, também, que a ausência de dívida pública em moeda estrangeira não elimina o problema. Basta que sejam elevados, como costuma ocorrer, os passivos externos líquidos do país ou os ativos domésticos líquidos relativamente ao estoque de reservas internacionais no Banco Central.
Mas fica ainda assim a pergunta, na qual insistem os heterodoxos extremados: faz sentido falar em “sustentabilidade” da dívida? Ou isso não passa de um preconceito ortodoxo, a ser superado pelo abandono de ideias ultrapassados? Haveria, portanto, uma petição de princípio no parágrafo anterior? Duas respostas aqui. Uma, mais fraca, é que os detentores do capital acreditam nessas “ideias ultrapassadas” e podem reagir de acordo com elas. Essa resposta é mais fraca porque é possível admitir que, ao longo do tempo, o choque com a realidade dissiparia os preconceitos.
Mais fundamental é reconhecer que, sim, a dívida pública pode se revelar “insustentável”, ainda que não com a rapidez e a previsibilidade imaginada pela ortodoxia. Isso porque a dívida pode entrar numa dinâmica de bola de neve e alcançar uma proporção proibitiva do PIB e da riqueza nacional.
Como? O crescimento da dívida corresponde ao déficit (descontado o aumento da base monetária). O déficit, por sua vez, depende da despesa de juros, que reflete o estoque pré-existente de dívida e a taxa de juro média incidente sobre a dívida. A dívida gera déficit que gera dívida em valores sempre maiores – a menos que o setor público seja capaz de compensar essa tendência com superávits primários elevados. O que interessa, entretanto, não é o valor absoluto da dívida, mas a sua relação com o PIB, a receita tributária e o estoque de riqueza nacional. Por conveniência, o costume é comparar a dívida com o PIB, que aparece como proxy da riqueza e da capacidade de pagamento do setor público.
Com um pouco de aritmética, pode-se demonstrar que as variáveis-chave na determinação da trajetória da razão dívida/PIB ao longo do tempo são, de um lado, o diferencial entre a taxa de juro sobre a dívida e a taxa de crescimento do PIB e, de outro, o resultado primário. A variação do quociente dívida/PIB é função direta desse diferencial e função inversa do resultado primário.
O argumento dos heterodoxos extremados é que basta assegurar uma taxa de juro inferior à taxa de crescimento econômico para estabilizar a razão dívida/PIB sem que o superávit primário necessário para alcançar tal objetivo seja muito elevado. Ademais, lembram eles, o crescimento econômico induzido pela política fiscal expansiva e pela política de juros modestos não só aumenta o denominador da razão, como facilita a geração de superávits nas contas primárias ao elevar a arrecadação e diminuir as despesas de caráter cíclico (seguro-desemprego e outras).
Tudo isso é verdade, mas só até certo ponto. As acima mencionadas restrições de capacidade e de balanço de pagamentos podem tornar inviável a combinação de políticas fiscais e monetárias expansionistas. Mas se a taxa de juro passa então a superar a taxa de crescimento econômico, fica difícil impedir fica impedir o aumento da razão dívida/PIB. Esse aumento não tem como continuar indefinidamente, pois não pode exceder o estoque de riqueza nacional. Muito antes de bater nesse teto, o crescimento da dívida levará a um aumento dos prêmios de risco embutidos na taxa de juro dos títulos públicos, realimentando o crescimento da dívida via componente financeiro do gasto.
O governo acabará confrontado, cedo ou tarde, com a tarefa sempre politicamente difícil de cortar gastos ou aumentar impostos – difícil em si mesma e prejudicial, além disso, para a demanda agregada e o PIB, o que joga a economia num círculo vicioso e realimenta, também por essa via, o crescimento da dívida
Heterodoxia, pero no mucho
A heterodoxia extremada tem muitos méritos, inclusive alguns que não cheguei a abordar aqui. Ela é superior, mesmo na versão talvez caricatural que aqui critiquei, ao fiscalismo tosco de muitos economistas ortodoxos. Mas ao favorecer a percepção de que não há, ou há poucos, limites para o gasto público, ela pode contribuir para desastres de política econômica.
Como dizia o presidente Ernesto Geisel, um governo será composto, por toda a eternidade, de um ministério em que todos os ministros querem gastar – todos menos um, a quem cabe economizar: o ministro da Fazenda ou da Economia. Se esse último quiser ser gastador também, aí o governo corre risco.
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Uma versão resumida deste artigo foi publicada na revista “Carta Capital” em 1 de abril de 2022; O autor é titular da cátedra Celso Furtado do Colégio de Altos Estudos da UFRJ. Foi vice-presidente do Novo Banco de Desenvolvimento, estabelecido pelos BRICS em Xangai, de 2015 a 2017, e diretor executivo no FMI pelo Brasil e mais dez países em Washington, de 2007 a 2015. Lançou no final de 2019, pela editora LeYa, o livro O Brasil não cabe no quintal de ninguém: bastidores da vida de um economista brasileiro no FMI e nos BRICS e outros textos sobre nacionalismo e nosso complexo de vira-lata. A segunda edição, atualizada e ampliada, começou a circular em março de 2021. E-mail: [email protected]; Twitter: @paulonbjr; Canal YouTube: youtube.nogueirabatista.com.br; Portal: www.nogueirabatista.com.br