Os advogados usam o termo “despiciendo” para classificarem algo desprezível numa ação que tem significação muito maior ou um argumento que mal influi no debate.
Pois é despiciendo o debate sobre a legalidade do ato de perdão presidencial a Daniel Silveira, seja pela sua finalidade (não é um ato de clemência, mas de ataque a outro poder), seja por sua formalidade (inexiste pedido, parecer, razões de direito, etc).
Há muito tempo já se consagrou a tese jurídica de que mesmo um ato discricionário (ou seja, um ato de vontade do governante, previsto na legislação), se fundamentado – e por vezes, mesmo não sendo -, exige legalidade estrita nas razões de adotá-lo.
Neste caso, ele foi violada em vários pontos, pois sem critério, algum exceto o de ser o de livrar Daniel Silveira da sentença ainda fresca e não transitada em julgado, com evidente usurpação do poder do Supremo Federal, como se o Bolsonaro fosse o 12° ministro, com um voto que prevalecesse sobre todos os demais.
O jutista Lênio Streck, no Conjur, resume as razões pelas quais o ato foi ilegal:
“Foi o ato mais grave de agressão à democracia cometido pelo presidente Bolsonaro. Atravessou o rubicão, foi, voltou e atravessou de novo. Pisoteou. Ao conceder a graça ao deputado, Bolsonaro ofende o STF. Há nítido desvio de finalidade. Ultrapassou o limite da separação de poderes. Se o STF decidiu quais os atos que ferem a democracia e ao próprio STF, não pode ser o presidente da República que se arvorará no interprete do interprete. O presidente não é o superego da nação. Há abuso de competência. Quem guarda a Constituição Federal é o STF, não o presidente da República. O Brasil dá péssimo exemplo ao mundo. Só reis absolutistas agem desse modo. Mas ainda há STF no Brasil. Deve haver. Para conter esse abuso”.
Hoje e segunda-feira uma montanha de recursos contra o decreto presidencial desmoronará sobre o STF e há poucas dúvidas de que , na essência, serão acolhidos.
A questão, penso, é totalmente política.
Jair Bolsonaro mexeu em uma das “4 linhas da Constituição”, como ele próprio costuma dizer.
(Ainda) há juiz em campo, mas ele e seu “time” estão autorizados a ignorar seus apitos.
“Seja feita a minha vontade”, esta é a regra suprema que se expressa no decreto que indulta Daniel Silveira no processo, ainda inconcluso, de suas ameaças aos ministros do STF.
É um sinal verde para que a matilha bolsonarista avance sobre seus adversários (e sobre a lei) de dentes arreganhados, porque significa que, apenas pela vontade presidencial, ficarão impunes.
Ao fantasiar-se de Deus, como juiz supremo do país e intérprete final da Constituição, Bolsonaro abriu a porta do inferno para seus zumbis entrarem.