A nova onda do pensamento único

Um quarto de século depois do surgimento do “pensamento único” que marcou a natureza de um conjunto pobre de ideias que “dourou” a pílula da globalização, voltamos a ter uma crosta da monoideia que empurra o sentimento coletivo de que só algumas regras e leis (políticas e econômicas) são capazes de bem gerir o destino humano, como se estes tivessem à sua frente só uma estrada, aquela construída e sinalizada pelos “mercados”, da qual desviar-se significaria sempre rolar por precipícios e atirar as nações em desgraça.

Abalada com o surgimento de regimes progressistas, esta via – via crucis, para os países pobres – está restaurada nos tempos presentes, com suas faixas de sentido obrigatório.

Não é preciso estar entre o público prioritário da vacinação da Covid para lembrar dos discursos sobre o famigerado “tripé macroeconômico” (câmbio flutuante, metas fiscais e metas de inflação) diante do qual todos tinham de ajoelhar e persignar-se, com pena de ser condenado à danação intelectual. Claro que, neste altar, imolaram-se políticas industriais, atrofia dos serviços públicos e dos gastos sociais e uma política de juros que desse viabilidade ao desenvolvimento econômico necessário ao país.

Mas isso é uma longa história e agora, prefiro reproduzir da Folha o artigo do sempre instigante economista Paulo Nogueira Batista, a quem este blog sempre publica os textos (amanhã, aqui, ele expande este tema), sobre o exílio que se impõe às ideias que diferem ou contrapõem-se a estas, tão conhecidas e tão fracassadas.

A Sibéria já não tem mais fronteiras

Paulo Nogueira Batista Jr. na Folha

O debate econômico nos principais órgãos de comunicação brasileiros quase desapareceu nos anos recentes. Com poucas exceções, lê-se e ouve-se um único ponto de vista.

Só recebe grande veiculação o que eu costumo chamar de “ortodoxia de galinheiro”, uma versão empobrecida da ortodoxia econômica ensinada (mas nem sempre praticada) nos EUA. Em geral, repete-se por aqui o que os ortodoxos de lá consideraram verdadeiro em décadas passadas.

Um debate pobre e unilateral, como o que temos, tem consequências perigosas para um país, pois é da contraposição de ideias que surge o progresso. Sem esse debate livre e aberto, sem as fricções que ele produz, não há avanços, e nem se pode falar propriamente em democracia.

A estagnação ou semiestagnação da economia nos últimos 40 anos é, em parte, resultado da estagnação do debate de ideias entre nós. Com um debate livre, dificilmente teriam prosperado políticas econômicas antinacionais, inconsistentes com os interesses da maioria da população. Dificilmente o Brasil teria importado “consensos” que nos levaram a seguir políticas temerárias em diversos períodos, tais como o excessivo de endividamento em moeda estrangeira, a liberalização prematura dos movimentos de capital, a apreciação exagerada do câmbio e o abandono do investimento público em infraestrutura.

A pregação de “reformas” é sempre muito seletiva. Quase nunca são lembradas reformas fundamentais como a do sistema financeiro, a “estatização” do Banco Central (para torná-lo independente de interesses privados) e a redistribuição ampla da renda, inclusive da tributação, para que ela possa ser socialmente justa.

Uma curiosidade é que o responsável pela lista dos excluídos era um ex-stalinista, que reproduziu comportamento encontradiço em pessoas com esse passado político: usava, na defesa dos interesses do capital, os métodos e vícios aprendidos na escola do venerável Joseph Stalin, grande especialista em apagar o presente e o passado. O mais destacado dos integrantes da lista era Leonel Brizola, que foi quem lançou o mote que estou recuperando agora. Em entrevista à época, Brizola ironizou: “Mandaram-me para a Sibéria”. A alusão era ao passado stalinista do executivo da Globo.

Hoje, o quadro é pior. Na mídia brasileira, a Sibéria quase não tem mais fronteiras. As suas imensas e lívidas paisagens se alastraram por toda a parte — televisão, rádio, jornais, revistas e canais de internet. Além disso, a lista dos exilados inchou e passou a incluir, com exceções ocasionais, a centro-esquerda e a esquerda inteiras. A Sibéria está ficando “​crowdeada”.

Fora da mídia alternativa —basicamente sites, canais e blogs independentes—, quase não há mais espaço para visões críticas ao “consenso do mercado”. Esta Folha, com limitações, é uma das poucas exceções. O brasileiro desavisado haverá de pensar que não existem mais dúvidas sobre os pilares da ortodoxia de galinheiro.

É espantoso, leitor, o que passa por sabedoria econômica no Brasil! Um estágio de curta duração no FMI já faria bem aos economistas do mercado tupiniquim. É que o Fundo, desde a crise de 2008, empreendeu considerável revisão da sua macroeconomia. Hoje, por exemplo, é difícil encontrar na instituição uma defesa radical da austeridade fiscal, que não leve em conta seus efeitos sobre a atividade, o emprego e a distribuição da renda. É verdade que o braço operacional, mais conservador, ainda se mostra relutante em abandonar a abordagem fiscalista. Mas é difícil encontrar algum economista do FMI que elogie, com sinceridade, um teto que congela em termos reais a maior parte do gasto público primário por 20 anos —e ainda por cima inscrito na Constituição.

Como é sintomático do nosso atraso que se possa invocar até o FMI, velho de guerra, para criticar a ortodoxia brasileira!

 

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