Muito lúcida e esclarecedora a entrevista dada à Folha pelo professor Wilson Gomes, da Universidade Federal da Bahia, chamando atenção para o fato de que, embora perdendo apoio entre a parcela do eleitorado que se deixou arrastar pelo antipetismo raivoso dos últimos anos, conserva o núcleo de ódio absoluto que se construiu durante aquele período e que permanece num universo próprio de autodefesa agressiva, ao qual ele chama de comportamento de matilha.
Um conceito, aliás, que já havia sido encontrado em comentários aqui e em vários outros blogs , porque é indispensável para que se compreenda o comportamento político do atual presidente que não dialoga com as forças políticas e institucionais, mas põe contra elas esta parcela da opinião pública permanentemente mantida a rosnar, pelas redes sociais, exercendo amedrontamento e chantagem para que se curvem às suas imposições.
Trancrevo parte da entrevista, cuja íntegra pode ser vista aqui, por assinantes:
… como vê a atuação do governo Bolsonaro nestes primeiros cinco meses?
O governo Bolsonaro continua forçando limites do que pode ser feito para desafiar o sistema de pesos e contrapesos da democracia liberal, que vem da separação de Poderes. Vivemos num momento muito interessante que é uma espécie de encruzilhada. A democracia nunca foi tão testada nesse limite desde a restauração democrática em 1985.
O sr. vê um encolhimento da base de apoio do governo?
O bolsonarismo não ganhou a eleição sozinho, ele parasitou um movimento muito forte que foi o antipetismo. Tanto que agora começou a surgir como tendência do outono-inverno o sujeito que diz ‘não sou bolsonarista’ ou ‘eu votei no [João] Amoêdo’. O antipetista não bolsonarista é o primeiro grupo que já vai se desgarrando de Bolsonaro.
A matriz contra a corrupção se afasta porque o combate à corrupção não é mais um argumento que o bolsonarismo possa brandir. Os liberais oportunistas, que dariam um cheque em branco ao diabo pelas reformas, também se afastam. O olavismo contribui para produzir repulsa dos militares. As placas tectônicas que formam o bolsonarismo estão colidindo.
Quem fica é aquele bolsonarismo mais hardcore que não deve ser subestimado. Bolsonaro só encolhe até certo ponto, como nós vimos nas manifestações.
Acredita que esta base bolsonarista mais sólida tem condições de, sozinha, servir como instrumento de pressão?
Pode fazer pressão na dobradinha entre os ambientes digitais e atos de rua. Mas não sei se é suficiente para governar. O bolsonarismo é basicamente uma matilha digital ultraconservadora. São pessoas que estão mais preocupadas com coisas como o avanço do comunismo na escola, em ser contra a balbúrdia, contra o sexo, contra as chamadas pautas liberais do ponto de vista moral. É um grupo identitário, profundamente tribal e que se move por fantasias e inimizades. Possui uma identidade existencial quase que religiosa e se une contra inimigos em comum.
Inimigos que incluem outros Poderes como Congresso e Supremo.
É daí que vem a ideia de crise epistêmica, que é um comportamento que consiste em desacreditar as instituições as quais a sociedade atribui a capacidade de arbitrar sobre fatos, sobre o direito, sobre a verdade. É uma espécie de ceticismo artificialmente induzido com propósito de desqualificar as instituições dizendo que elas foram conquistadas pela esquerda. Isso inclui não só os demais Poderes, mas também o jornalismo, a ciência, os intelectuais, os professores.
Mas estes grupos buscam novos mediadores ou querem que não exista mediação?
Eles querem fazer a desintermediação. Substituíram o sistema de mídia tradicional por uma ecologia midiática própria na qual produzem verdades para eles mesmos com base em fake news e em fake philosophers, como Olavo de Carvalho. São céticos em relação a aquilo que não controlam e crédulos diante de qualquer coisa que seja produzida por um deles. Desde que seja um deles, porque é um sistema de vigilância. Quando alguém começa a ir numa linha diferente, logo vai para o index de comunistas, que agora inclui até o Kim Kataguiri.
As redes ajudam a retroalimentar esses discursos?
Retroalimentam de uma forma horizontal, mas não exatamente espontânea. Há uma indústria da produção da informação. Esses grupos de WhatsApp são coordenados, a gente estuda isso. São duas ou três pessoas por grupo que são responsáveis por ficar inserindo conteúdo. Há ali um novo tipo de mediador que publica o que é bom para a tribo, o que é bom para manter a matilha atiçada e pronta para luta. Se não tiver um fato para motivar, eles inventam.