As duas inflações

Manchete da Folha, a reportagem de Fernando Canzian sobre a diferença entre a já robusta inflação oficial e a trágica inflação real para as famílias mais pobres, onde as despesas com alimentação, habitação e transportes têm peso muito maior que o registrado entre os de maior renda, dá números ao que a imensa maioria dos brasileiros sente todos os dias: a perda do poder de compra é muito maior do que a que sai nos jornais: 20%, o dobro dos 10% que indica o IBGE.

Estendido o período até o início da pandemia (janeiro de 2020), dobra de novo e vai a quase 40%.

Só nos últimos 12 meses, período em que os alimentos dispararam 20%, a renda real familiar per capita do trabalho na metade mais pobre despencou 18%, de R$ 210 mensais para R$ 172. Embora o valor não inclua outras rendas, como o Bolsa Família ou o auxílio emergencial, trata-se do menor patamar para a renda familiar do trabalho em mais de uma década —e num cenário de aceleração inflacionária.

Muito melhor que nos gráficos aqui ao lado, estas estatísticas se desenham na foto de Danilo Verpa, da Folhapress, lá ao alto: a fila que se formava, semana passada, na Ceagesp de São Paulo, à espera da doação de refugos de frutas, verduras e legumes com que cada uma daquelas pessoas contava para a “mistura” para si e para seus filhos.

Não é preciso mais que os números e, sobretudo, os rostos desta realidade para que ninguém possa se opor, com argumentos fiscais, à necessidade de que algum mecanismo distributivo – estamos ainda no limbo quanto a isso, de novo atrasados diante do relógio da miséria – que mitigue este retrato inaceitável para um país que, há dez anos, caminhava para deixar a fome como página virada do passado.

Mas não é isso, apenas, o que resolverá o drama intolerável em que estamos metidos, já ao final do primeiro quarto do século 21.

Nenhum auxílio, bolsa ou renda transferida funcionará no médio prazo sem que o Brasil retome o desenvolvimento que só o Estado pode induzir, com programas econômicos e obras que só acontecerão com investimento público, porque a iniciativa privada, por estes trópicos, só se interessa pelo tamanho de nosso mercado (apesar da exclusão, imenso) e por assumir, a preço vil, o que se construiu com dinheiro público.

Resolver o problema da pobreza – embora pareça tautológico, não é, mesmo que nossa elite não entenda – é resolver o problema da riqueza, porque significa compreender que esta multidão de desvalidos é força de trabalho, é mercado de consumo, é parte ativa e não passiva da economia.

Hoje, ela consegue alguma simpatia, de tão deprimente que nos tornou a sua situação. Mas recordemos que, tempos atrás, eram contra dos “vagabundos” que não queriam trabalhar.

A recuperação do que foi perdido e um novo avanço só se darão com solidez se acompanhados de um grau de identidade política que não permita que, de novo, a ideia de que “somos todos classe média” não deixar que a manipulação seja mais forte que a lucidez.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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