Dr. José Afonso Silva, 88 anos, dá aula sobre embargos infringentes

A seção de Opinião/Debate da Folha de São Paulo costuma trazer dois artigos de pontos-de-vista contrários. É uma iniciativa boa do jornal. O elogio vale para mostrar que não somos radicais anti-imprensa.

Ontem, por exemplo, a Folha publicou um par de textos sobre os embargos infrigentes: um artigo a favor, escrito por um veterano constitucionalista de 88 anos, e um contra, escrito por um procurador de 49 anos.

O artigo do procurador é confuso e inconclusivo; não se preocupa com direitos civis, mas apenas em simplificar o processo de acusação. É uma visão parcial de quem é pago para acusar. Não me dou ao trabalho de reproduzi-lo. O título é “Revogações tácitas e privilégios explícitos”, de Luiz Carlos dos Santos Gonçalves.

O texto do velho constitucionalista, por sua vez, é uma aula de Direito. Escrito com simplicidade e precisão, revela um especialista genuinamente preocupado em ver o STF tomar decisões alinhadas ao espírito da Constituição. Vale a pena ler.

Questão de direito

Por José Afonso da Silva*

O processo da ação penal 470 (mensalão) é complexo e controvertido, dada a quantidade e qualidade das pessoas envolvidas. Sua forte carga política produz visões emotivas e até apaixonadas, incompatíveis com um juízo de valor objetivo. Difícil saber se as condenações foram justas, quando não se tem acesso aos autos do processo.

Por isso, só entro nesse cipoal agora porque se trata apenas de questão de direito, quanto a saber se cabem ou não embargos infringentes. Um pouco de história pode ajudar solucionar a dúvida.

A Constituição de 1969 dava competência ao Supremo Tribunal Federal para regular, em seu regimento interno, o processo e julgamento dos feitos de sua competência originária, o que ele fez no seu título IX, incluindo os embargos infringentes, quando existirem, no mínimo, quatro votos divergentes (art. 333, parágrafo único).

A Constituição de 1988 não repetiu essa competência, daí a dúvida se assim mesmo ela recepcionou aqueles dispositivos do regimento. O próprio Supremo admitiu essa recepção, pois continuou a aplicar aqueles dispositivos regimentais.

A fundamentação é simples. A Constituição dá ao Supremo a competência originária para processar e julgar infrações penais de certos agentes políticos (art. 102, I, b e c). Quem dá os fins dá os meios, tal a teoria dos poderes implícitos. Os meios à disposição eram as regras do regimento interno, até que viesse uma lei disciplinando a matéria.

Aí é que entra a lei nº 8.038/1990, que disciplinou os processos de competência originária do Supremo, entre os quais o da ação penal originária. Daí a controvérsia sobre se essa lei revogou ou não a previsão regimental dos embargos infringentes. Expressamente não revogou, porque lei revoga lei, não normas infra legais, como as de um regimento. A questão se resolve pela relação de compatibilidade.

Há quem entenda que não há compatibilidade porque não cabe ao regimento disciplinar matéria processual, quando não previsto expressamente na Constituição. É certo. Mas aquela lei não regulou inteiramente o processo da ação penal originária. Só o fez até a instrução, finda a qual o Tribunal procederá ao julgamento, “na forma determinada pelo regimento interno” (artigo 12). Logo, se entre essas “formas” está a previsão dos embargos infringentes, não há como entendê-los extintos, porque, por essa remissão, eles se tornaram reconhecidos e assumidos pela própria lei.

Além do mais, a embasar esse entendimento existe o princípio da ampla defesa com os meios e recursos a ela inerentes (art. 5º, LV).

A aceitação dos embargos infringentes pode gerar mudança do resultado do julgamento de algum dos crimes, especialmente tendo em vista a presença de dois novos ministros. Não parece possível a absolvição total, porque os embargos se atêm às divergências que são parciais. Poderá haver diminuição de pena. Contudo, o fato de ministros admirem os embargos não significa necessariamente que os julgarão procedentes com alteração do mérito das condenações.

Enfim, a questão ainda não está resolvida, porque falta o voto de Celso de Mello, grande ministro, sério e competente. Sua história tende à aceitação dos embargos, pois sempre defendeu as garantias dos acusados. Seu voto, qualquer que seja, terá grande repercussão política. Ele sabe disso, mas não teme.

* JOSÉ AFONSO DA SILVA, 88, constitucionalista, é professor aposentado da Faculdade de Direito da USP. Foi secretário da Segurança Pública (governo Mário Covas). É autor de “Curso de Direito Constitucional Positivo” e “Aplicabilidade das Normas Constitucionais”

Publicado originalmente na Folha.

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23 respostas

  1. Foi escandalosa a falta de isenção da mídia. Na sexta-feira o Marco Aurelio Mello deu longa declaração no jornal da manhã da rádio jovem pan, e todas as emissoras foram na mesma linha, dizendo que a aceitação iria “melar” todo o julgamento. Mas ninguém mostrou porque alguns tinham opinião contrária. Parece que quem aceitou os embargos só pode estar favorecendo os mensaleiros, e quem não aceitou está em defesa do Brasil… triste episódio da democracia brasileira

  2. Com o devido respeito, gostaria de sugerir que no título do post se identificasse tratar do constitucionalista José Afonso da Silva, que é muito respeitado não só nos meios jurídicos, mas principalmente no segmento “concurseiros”, composta em sua maioria pela classe média. Abraços.

  3. Daqui a 49 anos, o Globo vai fazer um editorial dizendo que o STF inventou o tal do “domínio do fato” e que ela errou ao apoiar esta tese. Mas entnao o Globo será apenas um blog na internet produzido por um bisneto aposentado do Roberto Marinho. José Dirceu será nome de avenidas, escolas e prédios públicos.

  4. CONCORDO EM GÊNERO , NUMERO E GRAU COM O PROFESSOR, OS EMBARGOS EXISTEM E A JUSTIÇA TEM DE SER APLICADA, NÃO SE DEVE CONFUNDIR A OPINIÃO PUBLICA, OS EMBARGOS PERMITIRA REVISÃO DA PENA E NÃO ABSOLVIÇÃO.
    ….

  5. OS EMBARGOS INFRINGENTES PODE ATÉ SER LEGAL JAMAIS MORAL. DEVIDO AOS INDIVÍDUOS ENVOLVIDOS. DIREITO TEM QUEM DIREITO ANDA. ISSO É JUSTIÇA O RESTO É COMENTÁRIO PRA JUMENTO RONCAR, E BOI TER PESADELOS.

    1. Imoralidade é a Corte Suprema negar direito classificado como humano, como direito humano, a acusados. Os réus, todos eles, poderão recorrer ao fim e ao cabo à Corte Interamericana de Direitos Humanos, prevista no Tratado de São José da Costa Rica, tratado assinado pelo Brasil, em razão do STF estar a desonrá-lo, negando aos acusados da AP 470 acesso à dupla jurisdição (mas não o nega aos acusados no mensalão do psdb) considerado direito básico do ser humano. Não garantir direito humano, isto sim é imoralidade, mormente quando praticada por Corte Suprema, como é o caso. Além disto, a travessura golpista de alguns ministros tornar-se-á motivo de vergonha internacional para o STF e para o Brasil, quando o país for condenado pela Corte Interamericana.

  6. É impressionante como voces petistas são fanáticos. Querem justificar o injustificável. Quer ver só? imaginemos só por um instante se os condenados da ação penal fossem políticos do PSDB, ou de algum partido não aliado do PT. Será que voces teriam esse mesmo posicionamento? Preciso responder?

    1. A turma do psdb está a responder pelo mensalão do psdb, que a mídia tenta aliviar qualificando-o de mineiro, e, a esta turma, foi dado muitíssimo mais do que embargos infringentes: a ela foi permitido ser julgada a partir da primeira instância. Isto lhe permite exercer o chamado amplo direito de defesa, pois poderá ser julgada por no mínimo duas jurisdições distintas, direito fundamental que foi negado aos acusados na 470 (tanto os com prerrogativa de foro, quanto os que não a têm). Portanto, o MP e o Judiciário não estão tratando casos semelhantes (ambos, por exemplo, envolvem Marcos Valério) isonomicamente: tratam a turma do psdb segundo a lei, e a do PT negando direitos constitucionais aos acusados. Sua percepção da questão é completamente furada.

  7. O mestre disse.
    É, pois, irretorquível a tese dos Senhores Ministros favoráveis à admissibilidade dos embargos infringentes no STF, pois apoia-se no fato de que, embora a Lei nº 8.038/90 não faça referência a embargos infringentes na Ação Penal Originária, estabelece expressamente a dita Lei que o Tribunal procederá ao julgamento, na forma determinada pelo regimento interno.
    Desta forma, estando previstos os embargos infringentes no Art. 333, do Regimento interno do STF, e não tendo sido revogado, até então, tal dispositivo do RISTF vige e deve ser aplicado, por ser de direito e de justiça.
    Com efeito, assim dispõe a Lei:

    LEI Nº 8.038, DE 28 DE MAIO DE 1990.

    Institui normas procedimentais para os processos que especifica,perante o Superior Tribunal de Justiça e o Supremo Tribunal Federal.
    TÍTULO I
    Processos de Competência Originária
    CAPÍTULO I
    Art. 2º. O relator, escolhido na forma regimental, será o juiz da instrução, que se realizará segundo o disposto neste capítulo, no Código de Processo Penal, no que for aplicável, e no Regimento Interno do Tribunal.
    Art. 12. Finda a instrução, o Tribunal procederá ao julgamento, na forma determinada pelo regimento interno, observando-se o seguinte:
    I – a acusação e a defesa terão, sucessivamente, nessa ordem, prazo de 1 (uma) hora para sustentação oral, assegurado ao assistente 1/4 (um quarto) do tempo da acusação;
    II – encerrados os debates, o Tribunal passará a proferir o julgamento, podendo o Presidente limitar a presença no recinto às partes e seus advogados, ou somente a estes, se o interesse público exigir.

    A respeito cita-se o seguinte:
    Por Eduardo Guimarães, no Blog da Cidadania:

    Na madrugada de sexta (13) para sábado (14), este blog recebe e-mail de uma das fontes espontâneas que ajudam a alimentá-lo com informações. A mensagem foi enviada sob a rubrica “URGENTE” e trazia link de uma reportagem publicada discreta e exclusivamente no site do jornal O Globo poucas horas antes – até porque, tratava-se de uma bomba.

    A matéria, assinada pelo repórter de O Globo Paulo Celso Pereira, liquida com a argumentação dos ministros do STF que rejeitaram a interposição de embargos infringentes pelos réus do mensalão sob o argumento de que a Lei 8038/90, que instituiu as regras procedimentais para as ações penais originárias no STF, não previu aqueles embargos.

    A tese dos ministros desfavoráveis à aceitação dos embargos infringentes foi encampada, ipsis-litteris, por absolutamente TODA a grande imprensa: se a lei de quase um quarto de século atrás não determina que o STF acolha embargos infringentes – apesar de terem sido acolhidos tantas vezes por aquela Corte – eles não valem para os réus da Ação Penal 470.

    A matéria de O Globo diz exatamente o contrário. E prova que não houve omissão da Lei 8038/90 quanto à matéria em tela. O texto legal não cita os embargos infringentes sob a intenção clara do legislador de mantê-los, ainda que pessoas mal-intencionadas tentem fazer crer o contrário.

    Em 1998, o governo Fernando Henrique Cardoso propôs ao Congresso a extinção dos embargos infringentes acrescentando um novo artigo à lei 8.038, de 1990: “Art 43. Não cabem embargos infringentes contra decisão do plenário do Supremo Tribunal Federal”.

    A partir desse ponto, a reportagem de O Globo extermina com qualquer argumentação contra a legalidade dos embargos infringentes. Parte da matéria, abaixo reproduzida, não deixa qualquer dúvida.

    *****

    “(…) ao longo da tramitação da mensagem na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara, o então deputado Jarbas Lima, hoje professor de direito constitucional da PUC do Rio Grande do Sul, apresentou um voto em separado pedindo a supressão do trecho que previa o fim dos embargos. E argumentou:

    – A possibilidade de embargos infringentes contra decisão não unânime do plenário do STF constitui importante canal para a reafirmação ou modificação do entendimento sobre temas constitucionais, além dos demais para os quais esse recurso é previsto.

    Perceba-se que, de acordo com o Regimento Interno da Suprema Corte (artigo 333, par. único), são necessários no mínimo quatro votos divergentes para viabilizar os embargos — explicita o voto do deputado.

    (…)

    Apesar de o deputado Djalma de Almeida Cesar, que era o relator da matéria, ter defendido em seu primeiro voto a extinção dos embargos, conforme proposto por FHC, ele muda de posição ao longo da discussão e, no voto final, que acaba se transformando em lei, recebe a sugestão de Jarbas Lima e suprime o trecho que punha fim aos embargos.

    Na avaliação do doutor em direito Constitucional pela PUC-SP Erick Wilson Pereira, a existência desse debate dentro do Congresso dará novo argumento para os defensores dos embargos:

    – Você deve levar em consideração qual foi a vontade do legislador. Quando o plano da expressão não consta em determinado texto normativo, no conteúdo você pode levar em consideração o que o legislador debateu. Esse fato não foi debatido em nenhum instante. Se tivessem ciência disso, pode ter certeza que os defensores teriam levantado isso. É um fato novo — explica.

    *****

    Apesar da importância da reportagem, O Globo restringiu sua visibilidade e, três dias depois de ter sido publicada na internet, nenhum outro grande órgão de imprensa sequer a citou. E o que é pior: o exército de colunistas e editorialistas da grande imprensa continua afirmando que a Lei 8038/90 não ter citado os embargos infringentes significa que foram suprimidos.

    Este post está sendo publicado 48 horas antes de o ministro Celso de Mello proferir seu “voto de Minerva” sobre os embargos infringentes. Até aqui, a imprensa está MENTINDO sobre a razão de a manutenção deles não constar da Lei 8038/90. Diz que se não consta é porque foram “derrubados”.

    A razão pela qual os embargos infringentes não são mencionados na Lei 8038/90 está lá, nos anais da Câmara dos Deputados. Os arquivos da Casa dizem que esses embargos foram mantidos como direito de réus de ações penais que tramitem no STF, caso tenham ao menos 4 votos de ministros pela absolvição.

    A grande mídia, em guerra declarada ao PT, conta com a velha premissa de que o que ela não noticia, não existe. Contudo, tal premissa pode sofrer um duro golpe caso algum dos ministros que votaram pelo acolhimento dos infringentes cite os fatos na sessão do STF da próxima quarta-feira, antes ou depois de Celso de Mello proferir seu voto.
    Postado por Miro

  8. Nel Paese in cui mancava il lavoro (oggi) mancano i lavoratori.

    (Questo è il risultato della decadenza dell’industria navale che a poco a poco ha perso le proprie conoscenze e le capacità dei propri operai specializzati: chi ci ricorda?)

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