Leda Viana, por Aziz Filho

Frequentar o prédio da Avenida Atlântica onde morava Leonel Brizola foi, para mim, uma rotina de quase duas décadas.

E, volta e meia, em lugar do sétimo andar, ia eu parar no quinto, onde morava o professor Cibilis Viana que não era, como muitos achavam, apenas um fiel companheiro do líder gaúcho, desde quando, no Rio Grande do Sul, pôs meio de lado a sua carreira de professor universitário para chefiar o Gabinete de Administração e Planejamento, com que se contornou a burocracia e se deu uma agilidade realizadora imensa ao governo.

Cibilis era um homem doce, ponderado sem perder a firmeza de idéias, delicado ao ponto de escrever romances. E muitas vezes, para dar ordem à casa, como fez com Brizola no governo, precisava de sua companheira, Leda: decidida, resoluta, aplicava a disciplina possível àquele bando de sonhadores dos anos 50 que, nos 80 e 90, tornaram-se minhas melhores referências.

Soube, dias atrás, de que D. Leda, a quem todos sempre achamos um rochedo, se batia contra as ondas do novo coronavírus. Hoje, soube de sua morte.

Como devo a ela e a Cibilis o carinho com que me receberam naquele adorável Exército de Brancaleone, pensei em escrever em sua memória.

Mas rendo-me à delicadeza do texto de meu velho companheiro Aziz Filho, um dos repórteres que fazia inumeráveis plantões – como eu – na portaria do prédio em que ela, a síndica, teimava em por em ordem apesar do vizinho que fazia ali, para seu desespero, reuniões, entrevistas, gravações. Em resumo, uma bagunça.

Aziz, – que ao contrário de Leda, venceu esta maldita praga – pôde conviver com ela nos anos finais, e com delicadeza alivia-me da tarefa de fazer a homenagem a uma mulher que, como poucas, sabia fazer e mostrar que, como na frase de Guevara, é possível endurecer sem perder a ternura jamais.

Leda Viana

Morreu ontem Dona Leda D’Ávila Viana, uma querida, mãe da Ana Luíza, da Márcia e do Ricardo, viúva do Cibilis, o fiel secretário de Governo e de Finanças do Brizola no RJ. Foi Dona Leda quem escolheu o apartamento na Atlântica onde Dona Neusa e Brizola viveram após o exílio de 15 anos e onde uma legião de repórteres gastou a juventude em plantões longos e agitados. Cobrimos encontros políticos históricos, e Dona Leda tinha muito a contar sobre eles.

Ela passou os últimos anos altiva, até ser derrubada pela Covid-19. Tomava sol todo dia de manhã sentada no banco de madeira do jardim que ela cercou, quando era síndica, sob protestos do vizinho famoso. “Como um líder popular pode morar em um prédio com grades que o separam do povo, Dona Leda?”, resmungava o Brizola. Mas nossa amiga era dura na queda, as grades ficaram, o banco também, e ela tirava uma onda quando via Brizola ali com líderes do naipe de Mário Soares, protegido pelas plantas dos olhares curiosos do calçadão. “Está gostando do jardim agora, governador?”, ela falava, na lata.

Dona Leda me contou que Fidel Castro apareceu uma vez meio sem avisar, e Brizola recebia no sétimo andar um famoso que o cubano não gostaria de ter ao seu lado. O jeito foi malocar a visita no apartamento dela, no quinto, até que Fidel fosse embora. Quem conhece o talento discursivo do gaúcho e do cubano tem ideia do tamanho da espera. Ela me prometia contar quem era a visita que Fidel não engoliria, mas, talvez pelo vício de discrição e fidelidade de uma vida inteira, nunca disse.

Combinamos mil vezes de fazer entrevistas sobre essas e outras tantas emoções do prédio em que ela viveu tanto, mas não deu. Dona Leda fazia questão da presença da querida filha ex-deputada. “A Márcia não para no Rio, já está viajando de novo”, dizia. Já enxergava com dificuldade, mas o rosto dela se iluminava num sorrisão lindo quando via Júlia, minha filha, passando no meu colo, ensaiando os primeiros passos no calçadão e chamando-a de vovó, o que aumentou nossa conexão. Estava sempre lá no banco, com um colar de pérolas sutil valorizando seus vestidos caseiros.

Era firme, de opiniões fortes, belíssima naquela rusticidade que muitos gaúchos não perdem. Meu consolo é a certeza de que ela agora está cercada de gente boa, longe de quem faz festas e churrascos enquanto os brasileiros choram seus mortos. Dona Leda nunca terá de conviver com essa turma porque, com certeza, ela foi para o andar de cima.

Um beijão pra você, minha amiga, e obrigado por todos aqueles sorrisos. Júlia vai sentir saudade.

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4 respostas

  1. Não dá para perdoar a perseguição que a Globo e outros famigerados órgãos de imprensa fizeram contra Leonel Brizola. Não conheci Dona Leda, mas a verve precisa do Aziz Filho sobre sua pessoa é comovente. Esta praga, turbinada pela incúria de um presidente incapaz de qualquer sentimento altivo, tem ceifado muitas vidas preciosas em nosso país.

  2. Suas referências gritam sobre seu caráter, Brito. Sinto uma doce inveja. Fora os comícios que o grande Brizola fez em Fortaleza, em 1989, quando eu, com apenas 16 anos, saia da ETFCE, no Benfica, caminhando até o Centro para ver aquele que era pra mim também uma referência, tive a felicidade de vê-lo de perto, já em 1990, na Casa Amarela, da UFC, numa roda de discussão. Estava acompanhado de Alceu Colares e de Marcelo Alencar – cujo caráter se revelaria pouco depois. Bom, o Brasil fez suas escolhas e paga por elas. Que possamos melhorar essas escolhas, mesmo sabendo que as chances de dispormos de Brizolas novamente são pequenas. Né não?

  3. Belíssima e emocionante crônica,que poderia inspirar nossa juventude raivosa e primitiva, se pelo menos eles lessem alguma coisa que não fosse tuítes de doidos alienados e de presidentes sociopatas em surto psicótico permanente.

  4. Emocionante a homenagem. Confesso que nunca havia ouvido falar dela, mas só de ler essas poucas palavras deu vontade de um dia tê-la conhecido e também de ter vivido esses tempos em que Brizola era vivo. Como bom gaúcho que sou, tenho enorme admiração pelo governador e sou é claro, filho de um brizolista. Ainda mais, por ter nascido e morado alguns anos em São Borja. O que propiciou ouvir belíssimas histórias sobre ele, Jango e Vargas. Pena que quando ele faleceu, eu era apenas uma criança, mas que já ia com meu pais aos comícios lá no interior (em uma cidade vizinha a São Borja) para torcer pelos candidatos do partido do Brizola. Fiquei muito feliz quando em 2012, por apenas 4 votos, finalmente elegeu-se um prefeito do partido dos pobres como minha mãe dizia, embora eu não morasse mais lá. Meu irmão sempre gostou de política, tendo sido filiado por muitos anos ao PT. E eu sempre sabia, pra prefeito o partido do brizola defende os pobres mas pra governador e presidente é o partido do Lula. Meus pais embora tenha tido pouco estudo, sempre tiveram consciência política. Como sou de um lugar muito pobre, era e é até hoje, muito comum a distribuição de ranchos, na véspera da eleição para se garantir a vitória. E como sempre ouvi, comem bem durante o mês de outubro e depois passam 4 anos sem ter o que comer e sem ter acesso a um médico que seja. Ou seja, sempre soube da importância do voto e de nunca se corromper. Aprendi também com meus pais que o estudo transforma e que eu poderia sim ser o que eu quisesse e sonhasse. Luz e água era uma coisa que não tinha em minha casa quando nasci, e eu não nasci há 10 mil anos atrás e sim em 1996. O pt fez muito pelo Brasil e muito pelo interiorzão do RS. E o mais triste é ver que grande parte das pessoas que se beneficiaram dos governos petistas, hoje saiem em coro na defesa do bolsonaro e no grito de lula ladrão. Mas as pessoas são assim né. Entre Jesus e BARRABÁS a Bíblia já nos conta quem escolheram.

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