O discurso da estupidez

Desde ontem à noite andava encruado meu pensamento de que a batalha que se travará, em 2022, no Brasil, tem traços diferentes do enfrentamento entre esquerda (ou centro esquerda) e direita (ou, certamente, extrema direita), embora, é claro, este embate exista e existirá daqui a um ano e meio.

Ajudou-me a desencalhar a mente a entrevista do psicanalista Mauro Mendes Dias sobre seu livro O discurso da estupidez, dada a Amanda Mont’Alvão Veloso, da BBC News Brasil.

É longa, mas preciosa para entender o que se passou e se passa, aqui e em grande parte do mundo.

Dias começa por estabelecer corretamente a relação de causa e efeito, que muitos esquecemos com frequência: foi o discurso da estupidez que nos legou líderes estúpidos, não o contrário.

“Quando a política se torna um espetáculo, trata-se de transformar a complexidade da realidade, de agradar o público e a opinião pública, e não do compromisso político. Então, o discurso da estupidez propiciou o advento de líderes estúpidos”, diz o psicanalista.

Sim, sim, é isso, espetacularizou-se a política pela via da moralidade judicializada, do “bem contra o mal” e ela deixou, por isso, de ter ser julgada pelos seus efeitos na vida social, porque “reduz a complexidade, a inteligência e a reflexão” e a transforma “num espetáculo grosseiro”. E é nesse caldo que se conformam os Berlusconis, Trumps, Bolsonaros e outros.

O Norte que personagens assim apontam é, necessariamente, simplista e depende, no essencial, da criação de “inimigos” sobre os quais basta apontar perigos ilusórios.

(…)não é por acaso que os líderes estúpidos, principalmente aqueles que ascenderam na Europa, elegeram o imigrante como o grande problema. Ou nos EUA, em que se pensou que um muro na fronteira com o México ou acusar a China de querer roubar a economia mundial iria resolver todas as questões do país. (…)”O estúpido quer prometer absurdos e cultivar uma espécie de adoração da morte; trata-se, o tempo todo, de destruir. Seja uma ilusão de mudança, seja tudo aquilo que representa o patrimônio da humanidade, no sentido ecológico ou cultural.”

Bolsonaro nunca escondeu e sempre repisou que seu propósito era demolir. Nem esconde agora que irá concentrar seu discursos em três “perigos iminentes” com a eleição de Lula: a “corrupção”, a suposta “perseguição religiosa” que isso representaria e um imaginário “comunismo” do qual estaríamos a caminho, neste ordem de prioridades.

No simplismo do discurso da estupidez, nenhuma importância tem o fato de que as sentenças de Lula foram derrubada, ou que jamais tenha havido perseguição religiosa ao longo de seus governos e que o funcionamento da economia lembrasse sequer o mais vago conceito de “comunismo”.

A estupidez não precisa da verdade ou do exame dos fatos. Nem mesmo de convicções. Mendes Dias o resume ao dizer que o discurso da estupidez leva a “uma nova realidade, a crença é colocada no lugar da verdade”. E esta crença não é numa religião, mas é ” é uma questão de seitas” que se formam com uma identidade em que se reconhecem , que os fortalece e que os açula em ódio contra todos os “diferentes” – sejam e ideias, sexo, comportamento…- que passam a ser “demoníacos”.

E não é só: “tanto o Brasil quanto outros países são palco de outra modalidade de enlaçamento pela crença: as teorias da conspiração, que, segundo o psicanalista, constituem comunidades em que pessoas compartilham um certo modo do vida. É o caso do movimento QAnon, nascido nos EUA e hoje com adeptos inclusive no Brasil. Segundo esta teoria, o ex-presidente dos EUA Donald Trump é herói em uma espécie de acerto de contas final contra poderosos supostamente pedófilos e satanistas que ocupam o governo, a imprensa e o mundo corporativo”.

Estes, porém, apesar de toda a sua fúria e do potencial destrutivo que demonstraram na invasão do Capitólio, são poucos e tem poder limitado. O perigoso, aqui, é o quanto de cobertura darão a eles grupos fundamentalistas as nossas Forças Armadas e o aparato policial que se serviram do personagem insano para tomarem as beiradas do poder.

O perigo maior é que estamos nos tornando tolerantes com o que há de pior, seja na pandemia seja da repressão aos conflitos da sociedade. Diz Mendes Dias: “estamos indo galopantemente em direção à destruição, e o tipo de tratamento que está sendo dado nesse país para a potência do vírus só reafirma o que estou dizendo. Estamos nos acostumando à proliferação e a multiplicação da morte à nossa volta.”

Pois é isso, é a morte que teremos de afrontar em 2022, é a “banalização do Mal”, como dela disse Hannah Arendt, aquela que se instala no vazio do pensamento de que parece ter-se acometido este país.

Se os tanques não se moverem, e se nossas elites não forem capazes de um “tudo contra o povo”, vamos disputar as eleições com rufiões de porta de botequim

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