O pastoreio bancário do rebanho latino. Por Nilson Lage

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Bancos são instituições que o assediam quando você prospera, juram amor eterno quando prosperou e, se você embarca no desvario do romance, tomam-lhe a casa, o carro e as calças antes de lhe cortar o crédito.

“É uma questão de spread”, explicará o gerente. “O risco. Nada pessoal”.

Logo ele, que era tão amigo!

Isso acontece desde tempos antigos, mas há sempre bichinhos presos na rede das aranhas.

Argentinos, por exemplo, são reincidentes. Têm carne macia, Malbec, um mar de petróleo e versos de um tango que vêm a propósito: “Los amigos ya no vienen /Ni siquiera visitarme / Nadie quiere consolarme en mi aflicción”.

É. La cumparsita.

Não dá para rir deles. A Argentina de hoje, como se sabe, é o Brasil de amanhã.

O que dói ver é países tão ricos aprisionados justo pelo fato de serem ricos: quem se daria ao trabalho de prendê-los em rede tão bem tecida, se fossem miseráveis?

Há certa lógica reversa nas civilizações: a cozinha mais criativa é a do país que passou mais fome, a China, e o nosso prato mais requintado, a feijoada, surgiu de escravos, a gente que menos tinha: ricos, sabemos bem, fazem churrasco de boi farto e comem com salada.

Quando a Europa partiu à conquista do mundo, não só era periferia degenerada do extinto império romano em uma Eurásia bizantina, árabe e chinesa, como sofria espasmos de carência pela interrupção da rota da seda, de onde vinham seus luxos: partiu em caravelas, levando canhões, à conquista do mundo com a ferocidade de adictos forçados à abstinência Não fosse isso, seria ainda por muito tempo um conglomerado de feudos que tentavam formar estados, numa região onde a água era escassa e a Igreja guardava em conventos memória e sabedoria. No máximo, trocaria o mel pelo açúcar de Creta e recitaria sonetos petrarquianos.

Os Incas, Maias, Astecas, Cheroquis, Apaches, pelo contrário, eram prósperos, satisfeitos: bastavam-se com flechas, lanças e tacapes.; foi nisso que se perderam.

Ouro e escravos à venda em grandes estoques formavam a riqueza dos impérios africanos: o metal está entesourado em Londres, Nova York e Pequim, os humanos em favelas e a África espera os chineses que talvez não pensem como os banqueiros europeus; tomara que Confúcio ajude.

Houve tempo em que os impérios tinham reis, cortes, exércitos que se confrontavam: dava para explorar as contradições e ir tentando com jeito sentar-se à mesa do banquete dos poderosos.

Agora, parece, não mais. Rei Dinheiro e seu 01%, após aprofundados estudos e com base em sólida dourina, tomaram o poder diretamente: nomeiam parlamentares e presidentes, falam por toda a mídia e subordinam os comandos dos exércitos do Ocidente. Europa e América obedecem a um conglomerado financeiro só, composto por entes, na maioria, anônimos; desenvolvem, quase sempre, no essencial, estratégia coordenada.

Esse império único não nos deixa ter energia atômica, armas eficazes, comunicação não vigiada, viajar ao espaço, fabricar navios e ter cultura própria. Toma-nos o que está debaixo da terra e dos oceanos. Quer a água dos rios e a força das cachoeiras, dos ventos e do sol que nos ilumina. Mas o pior é que sua tecnologia mais eficiente é tão poderosa que cega nossos olhos, tapa nossos ouvidos, cala nossas vontades.

Bons pastores distraem e aquietam seu rabanho, cuidando que ele esteja atento ao fantasma do lobo, que é, como a psicologia explica, ameaça e tentação.

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12 respostas

  1. Sr.Nilson.Lindo texto.Não fora o fatalismo que encerra,seria de muita utilidade.Pena que os IMPIOS DO POVÃO,não tem alcance intelectual para entende-lo.Somente a ELITE DO POVÃO,consegue tirar dele,algum ensinamento,mas acaba por perder-se em INÚTEIS REFREGAS,todas restritas,ao campo DA LÓGICA,para não passarem ao campo que interessa à todos nós,que é a DIALÉTICA.Quisera que não fosse assim. Mas convém frisar,ser um texto raro,no meio de tanta mediocridade que lemos e assistimos,diuturnamente.Observação:ELITE DO POVÃO,são os insuspeitos ESQUERDISTAS INTELECTUALIZADOS,que enxergam não muito longe.Isso mesmo,são eles,os que confundem REGIME COM SISTEMA.

  2. Texto perfeito. Uma aula. Continuo acreditando no Brasil, enquanto não me provarem que Nilson Lage não é brasileiro.

    1. É o sistema capitalista em sua versão senil: a financeirização. Como todos os sistemas nesse universo, o sistema capitalista foi criança, jovem, adulto poderoso e agora entra em sua fase de envelhecimento. A revolução microeletronica destrói mais trabalho humano do que proporcionalmente cria. E o trabalho humano é a energia vital do sistema. Sem essa energia partes do organismo vão entrando em processo de degenerescencia (tal qual um velho começa a sofrer de uma série de doenças da idade….). O excesso de dinheiro ficticio (aquele deslocado do trabalho humano) cria bolhas especulativas que esvaziam e deixam no chão economias inteiras. Como se sabe o sistema capitalista atual vive uma crise triplice: super produção, excesso de dinheiro ficticio e baixa utilização do trabalho humano (tornado supérfluo e não rentável devido à tecnologia). Uma coisa é certa: cedo ou tarde a imensa bolha de dinheiro ficticio (em dólares) que roda o planeta, vai estourar……..

  3. Mas das nossas entranhas surgirá uma força maior contra o império dos “mercados” e “investidores”. Na verdade, sem pátrias e enganadores. Lula presidente!!!

  4. “Mas o pior é que sua tecnologia mais eficiente é tão poderosa que cega nossos olhos, tapa nossos ouvidos, cala nossas vontades.”
    Trouxinhas hipnotizados por memes e fake news brigam e riem feito hienas em seus grupos de relacionamentos.
    Encaminham e curtem imagens e falsas informações curtas, enquanto ignoram textos bem escritos e links com fontes fidedignas.
    São os novos zumbis adictos, não de maconha, cocaína e crack, mas de redes sociais e de sua própria ignorância.
    Não conseguem se concentrar para ler um texto de mais de 2 parágrafos.
    Pensam fazer parte de movimentos Brasil pela liberdade, acorrentados estão.
    Seus pais, estúpidos e hipócritas, dirão que é TDA, procurarão medição para se eximirem da responsabilidade, porém mal sabem que são tão adictos quanto.
    Lamentável!!!

  5. ANTES DE CORTAR O MEU CRÉDITO TEMPOS ATRÁS, O BANCO DO BRASIL TOMOU O MEU CHEQUE ESPECIAL E A MINHA VIRGINDADE NO SERASA…KKKKK!

  6. Excelente e profunda análise da conjuntura política e social do mundo, revelando que os males que padecemos hoje não passam de uma versão pós-moderna dos desejos mais profanos do homem: poder e riqueza. Parabéns!!!

  7. Obrigada, Fernando Brito. Então há saída, é possível a criatividade dos subjugados, não é?

  8. Quem viu e entendeu o desfile da Tuiuti e entendeu, mesmo sem ter conhecimento de história entenderá o texto do Professor Nilson Lages. Para as cabeças midiáticas que já foram comparadas como sobreviventes num campo de concentração mental, em face da desolação futura, pensarão apenas numa saída. Dirão: ‘Ainda temos Miami. Toque outra vez, Lobão.’ Infelizmente, somente quem viu Casablanca, entenderá a citação irônica.

  9. Belíssimo texto, me lembrou Galeano, “a pobreza do homem como resultado da riqueza da terra” referindo-se a América Latina

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