Oportunidade de ouro para o Brasil, por Paulo Nogueira Batista Jr.

Posso fazer mais uma fuite en avant? Queria falar um pouco da enorme oportunidade que se abre para a atuação internacional do Brasil de 2023 em diante, admitindo-se, claro, que não venhamos a cometer o desatino de reeleger o atual presidente da República.

Enorme mesmo? Às vezes, fico pensando se, na esperança ardente de vislumbrar uma recuperação do Brasil, não acabo superestimando o ex-presidente Lula ou subestimando as dificuldades que ele terá de enfrentar. Pode ser, mas não creio. A oportunidade não tem precedentes e decorre da conjugação de três fatores: a) um país que é um dos gigantes do mundo com b) um presidente experiente e respeitado mundialmente, c) em ambiente de escassez de lideranças políticas no mundo – lideranças que sejam não só fortes, como aceitas amplamente.

Se Lula fosse o grande líder de um país pequeno, como o uruguaio Pepe Mujica ou o timorense Xanana Gusmão, não teria, por maiores que fossem as suas qualidades, possibilidade de fazer grande diferença fora do seu país. Mas o Brasil é um continente em si mesmo – quinto maior país em extensão territorial, sexta maior população e oitava economia do mundo. Quando foi presidente entre 2003 e 2010, Lula demonstrou o grande impacto internacional que o Brasil pode ter.

Uma diferença em comparação com aquela época é a ausência de líderes de alcance mundial. No Ocidente, o quadro é desolador – Joe Biden, Boris Jonhson, Olaf Scholz, Emmanuel Macron não convencem. Depois que Angela Merkel pendurou as chuteiras, não apareceu ninguém à altura dela. Líderes fortes como Xi Jinping e Vladimir Putin, por outro lado, são vistos com desconfiança e rejeitados pelo Ocidente, principalmente o russo. Já Lula tem um perfil e uma trajetória que o tornam capaz de dialogar com todos.

Há uma circunstância especial que favorece ainda mais a atuação internacional do futuro governo. Por uma feliz coincidência (parece até encomenda), cabe ao Brasil exercer em 2024 tanto a presidência de turno do G-20 como a dos BRICS! Veja, leitor, que o timing é ideal. 2023 seria cedo demais. 2024 dá tempo para que o novo se organize para produzir grande impacto mundial – com repercussões políticas, diga-se de passagem, dentro do nosso país.

O G-20 reúne todos os principais integrantes do “Ocidente Político” (Estados Unidos, os principais europeus, a União Europeia, Canadá, Austrália, Japão, Coreia do Sul) e quase todos os principais emergentes (os cinco BRICS, Indonésia, Turquia, Arábia Saudita, México, Argentina). Nos anos recentes, e sobretudo agora em 2022, o G-20 enfrentou a sua fase mais difícil, em razão principalmente das desavenças cada vez mais intensas entre três dos seus integrantes: Estados Unidos, China e Rússia. Depois da invasão da Ucrânia, as divisões dentro do G20 se acentuaram, com os Estados Unidos, Canadá e o Reino Unido se recusando a participar de reuniões na presença da Rússia. Tentou-se até mesmo, sem sucesso, expulsar a Rússia do G-20.

Até 2024, é possível que o conflito Ocidente/Rússia perca alguma intensidade e pode até ser que o Brasil, atuando em conjunto com outros países como a China e a Turquia, exerça um papel pacificador. Mais provável, entretanto, é que o conflito não se resolva tão cedo, o que torna mais difícil a atuação eficaz do G-20.

Assim, cresce no lado ocidental a importância do G-7 (Estados Unidos, Alemanha, França, Reino Unido, Itália, Canadá e Japão) e a dos BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) no lado dos emergentes.

Sem puxar demais a brasa para a nossa sardinha, afirmo tranquilamente que os BRICS se ressentiram muito do declínio do Brasil nos governos Temer e Bolsonaro. Dou o meu testemunho de alguém que participou do processo BRICS desde o início, em 2008: nós, brasileiros, com a nossa criatividade, energia e entusiasmo, éramos, em muitos períodos, o principal motor do grupo. Agora podemos voltar a sê-lo, valendo-nos da oportunidade de presidir os BRICS em 2024.

Muito pode ser feito. Dou alguns exemplos. É fundamental revigorar as principais iniciativas financeiras dos BRICS: o fundo monetário (chamado de Arranjo Contingente de Reservas – ACR) e, principalmente, o banco de desenvolvimento (batizado de Novo Banco de Desenvolvimento – NBD). Tratei dos avanços e percalços do ACR e do NBD no meu livro O Brasil não cabe no quintal de ninguém, em especial na segunda edição, e em livro publicado na Inglaterra no final de 2021, The BRICS and the financing mechanisms they created. Nesses dois livros, cobri as negociações entre os BRICS, de 2012 a 2014, e os primeiros cinco anos do ACR e do NBD, de 2015 a 2020.

Nesse primeiro quinquênio, alguma coisa foi alcançada no ACR e no NDB, ainda que com atraso e dificuldades. Desde então, infelizmente, não há indícios de que o ACR tenha feito progressos relevantes. Ainda não conseguiu, por exemplo, definir o local da sua sede ou unidade de monitoramento econômico. Pior é o caso do NBD, a mais importante iniciativa financeira dos BRICS. Sob a presidência, desde 2020, de um brasileiro medíocre, indicado pelo governo Bolsonaro, o banco parece estar andando para trás. Não consegue executar projetos importantes em quantidade expressiva, acumula problemas operacionais, demora enormemente a promover a entrada de novos países membros e pouco faz para substituir, nas suas operações, o dólar pelas moedas nacionais dos países membros. Os BRICS precisam, como se diz em inglês, take a long and hard look (lançar um olhar longo e duro) sobre o NBD e o ACR para preencher as lacunas e corrigir as distorções acumuladas nos últimos sete anos.

Além de retomar e retificar as iniciativas passadas, não seria o caso de introduzir novos temas na cooperação econômica dos BRICS? O sistema monetário internacional está se tornando gravemente disfuncional. Perdeu-se há algum tempo qualquer pudor de usar o dólar, o euro e o sistema financeiro ocidental como armas em guerras econômicas, a maior e mais recente contra a Rússia, que teve cerca de metade de suas reservas internacionais congeladas. Não teria aumentado, assim, a importância de definir caminhos alternativos, que diminuam a dependência em relação ao dólar, ao euro e aos bancos americanos e europeus?

O mundo caminha para uma crescente fragmentação econômica, financeira e monetária, com hiperpolitização das moedas e das finanças. Rússia e China, por motivos óbvios, têm interesse urgente nessa questão.

A discussão do assunto já começou dentro dos BRICS. A Rússia propôs que se lance o projeto R5, assim denominado por causa da coincidência de as cinco moedas dos BRICS começarem com a letra R – real, rublo, rupia, renminbi e rand. Esse projeto poderia desembocar no aperfeiçoamento e multilateralização de acordos de pagamento em moedas nacionais, bypassando o dólar, com redução de riscos políticos e dos custos de transação. E poderia – quem sabe? – avançar para objetivos mais ambiciosos como a criação de uma nova moeda de reserva internacional, amparada na força das economias dos BRICS.

Na última reunião dos ministros de Finanças e presidentes de Banco Central do grupo, em 6 de junho, foi estabelecida a Rede de Think Tanks dos BRICS para Temas Financeiros. Talvez seja o canal apropriado para conduzir esse tipo discussão ao longo dos próximos anos.

O Brasil, sob novo comando de 2023 em diante e presidindo os BRICS em 2024, pode dar um impulso decisivo a esses e outros temas de importância estratégica.

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Uma versão resumida deste artigo foi publicada na revista “Carta Capital” em 10 de junho de maio de 2022.Paulo Nogueira Batista Jr. é economista e foi vice-presidente do Novo Banco de Desenvolvimento, estabelecido pelos BRICS em Xangai, de 2015 a 2017, e diretor executivo no FMI pelo Brasil e mais dez países em Washington, de 2007 a 2015. Lançou no final de 2019, pela editora LeYa, o livro O Brasil não cabe no quintal de ninguém: bastidores da vida de um economista brasileiro no FMI e nos BRICS e outros textos sobre nacionalismo e nosso complexo de vira-lata. A segunda edição, atualizada e ampliada, começou a circular em março de 2021. E-mail: [email protected]
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