Os tubarões da vacina

Impressiona a falta de reação – não apenas a do Governo brasileiro, à qual já nos acostumamos – à esta imoralidade que são as notícias, ainda que provavelmente apenas um “marketing” macabro, de que grandes empresas estaria, agora com autorização oficial, negociando com a Astrazêneca a compra de 33 milhões de vacinas, parte para ser aplicada em seus funcionários, parte para ser “doada” ao SUS. (As aspas, aí, são pela minha quase certeza de que teriam compensação fiscal por isso).

É possível que não se pergunte que diabos de 33 milhões de doses são estas, numa hora em que não conseguiram mandar sequer uma das mais de 100 milhões que nos venderam (e já receberam por isso)?

De onde elas virão, se os governos da União Europeia estão ameaçando punir a empresa por ela ter anunciado que só pode entregar menos da metade das doses que lhes vendeu?

Será que somos bocós o suficiente para aceitar uma manobra em que cada dose será vendida a quase 24 dólares, quando o preço de referência da venda a governo – os nossos e outros, é de US$ 5,25 – e esta diferença por dose é um ágio de US$ 600 milhões de dólares, que acabarão saindo dos cofres públicos. E, talvez, quem sabe, por tratar-se de negócio privado, com pagamento de comissões a intermediários.

Obter as vacinas é imperiosa função de governo, porque vacinação ou é em massa ou não passa de um “seguro” individual – e parcial – sem nenhuma repercussão na saúde pública.

Tem toda a razão Cristina Serra, em seu artigo de hoje na Folha, ao falar que não podemos ter uma vacinação censitária, na base do “que tem, toma, quem não tem, morre”:

Cientistas renomados tem insistido que vacinação é estratégia coletiva, que só dá resultados quando aplicada em larga escala. Ninguém está a salvo do vírus individualmente ou em pequenos nichos. No Império, o voto era “censitário”, de acordo com a renda do cidadão. Agora, estaríamos diante da vacina “censitária”. Uma ilusão que só agravaria a desigualdade realçada pela pandemia.
Do ponto de vista ético, a generosidade de Albert Sabin deveria ser o nosso norte neste momento. O cientista renunciou aos direitos de patente da gotinha contra a poliomielite, o que permitiu proteger milhões de crianças no mundo inteiro. Solidariedade. É disso que mais precisamos.

O negócio só não é mais imoral porque, afinal, não vai acontecer.

 

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