Sakamoto: por que a praia cheia choca e o ônibus lotado, não?

Oportuno e sensível o texto de Leonardo Sakamoto perguntando a razão de achar-se uma irresponsabilidade (e é) a aglomeração em praias e áreas de lazer e o risco compulsório que milhões de trabalhadores sofrem em ônibus e metrôs, diariamente.

Este, porém, é naturalizado, como são naturalizadas as ainda perto de mil mortes diárias e os casos que, desde junho, acrescentam-se à razão de um milhão por mês.

Na areia, é a “liberdade individual”, inclusive a de adoecer e a de adoecer pessoas de seu círculo familiar. Na outra, “o dever social”, que deve ser cumprido para que a coletividade possa ter os serviços que considera essenciais, mesmo que muitos sejam supérfluos.

A uns, o direito de viver como quiserem, dispondo de si mesmos; a outros, nenhum direito de proteger sua vida, para poder sobreviver.

 

Covid: Por que foto de praia cheia
choca mais que de ônibus e trem lotados?

Leonardo Sakamoto, no UOL

Duas fotos – da praia de Ipanema, neste domingo (30), e do interior de um vagão de BRT, na zona oeste do Rio, em 8 de junho – chocam. A do transporte coletivo deveria chocar mais, mas não é o que se viu nas redes sociais.

Na primeira, com exceção dos empregados de quiosques e dos vendedores ambulantes, a massa está indo de livre e espontânea vontade se aglomerar. Considerando que o coronavírus continua circulando na capital fluminense, um dos locais onde a pandemia tem sido mais mortal, os banhistas estão colocando sua vida em risco de vida, bem como a vida de outras pessoas com quem terão contato nos próximos dias.

A segunda, contudo, é uma imagem da precisão. Não é apenas um atestado de desrespeito à razão, mas também de nossa falência como sociedade. Ela retrata um vagão de BRT na noite do primeiro dia de reabertura do comércio na capital fluminense. Em um ambiente de lata de sardinha como esse, o uso de máscaras pelos que lá estão é quase um tapa na cara do poder público. Ninguém pega um transporte lotado em meio a uma pandemia assassina por diversão pela mesma razão que roleta-russa não é esporte olímpico.

Alguma considerações: quem utiliza transporte público em uma pandemia são os mais pobres; muitos dos que foram obrigados a sair de casa sob o risco de infecção e morte não eram terraplanistas biológicos, mas não viram outra alternativa diante da negativa do auxílio emergencial ou de sua insuficiência diante das necessidades básicas da família; a imagem de um trem lotado já deveria chocar antes mesmo da pandemia por que demonstra a incapacidade de uma sociedade em garantir dignidade a uma parcela dapopulação que deseja simplesmente sair de casa e voltar a ela.

Contudo, na época em que essa foto viralizou, houve muitas críticas aos trabalhadores, como se fossem culpados por arriscar a vida da sociedade, igualando a quem se aglomera em bares ou praias.

Não se resolve a precisão criticando trabalhadores. Muito menos limitando o número de ônibus e trens em circulação. Aliás, vimos, ao longo dos últimos meses, que a redução no número de transportes públicos para evitar que pessoas saíssem de casa levou à superlotação dos veículos existentes e não necessariamente à redução do fluxo de pessoas – o que só reduziu o distanciamento social.

O cansaço de quase seis meses de quarentena, mesmo que flexibilizada, somado a um presidente que menospreza a doença e faz campanha para a economia voltar ao normal para evitar maiores danos à sua popularidade ajudou a lotar as praias não só no Rio, como em São Paulo e em outros locais do país, neste final de semana.

Mas não seria necessário termos tido quase seis meses de quarentena se ela fosse bem-feita, ou seja, se o país tivesse respeitado o isolamento social. Para tanto, precisaríamos ter contado com uma liderança que pensasse na população.

Como Jair Bolsonaro, desde o início, foi um dos principais adversários da quarentena, não houve interesse do seu governo em articular um plano nacional para a prevenção à covid-19. Se isso tivesse sido feito, saberíamos quando e como cada região iria se fechar e a partir de qual momento poderia se abrir, com indicadores claros.

Aqui, pelo contrário, ele propagou a mentira de que o Supremo Tribunal Federal afirmou que apenas prefeitos e governadores eram os responsáveis por esse planejamento. Tirou o corpo fora e, agora, terceiriza a responsabilidade pelas mortes.

Aglomeração em praias e em ruas de bares chocam mais que aquelas relacionadas a trabalho talvez por que as pessoas relacionem isso a um motivo banal (por mais que lazer não seja nada banal), acreditem que todos que estavam na foto sejam defensores do presidente ou não acreditem na ciência ou porque nós
mesmos gostaríamos de estar na muvuca, mas não estamos por que aguentamos firme o nosso próprio sofrimento psíquico.

O problema é que a busca para alívio do sofrimento psíquico da quarentena precisaria estar acompanhada de embasamento científico. E isso é tudo o que não temos ainda.

O fato de trabalhadores terem ido para o sacrifício em ônibus e trens lotados, muitas vezes em nome dos demais que puderam ficar em casa, deveria chocar ainda mais pela nossa incompetência como sociedade.

A vida nos lembra, contudo, que alguns sempre foram mais descartáveis que outros.

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