100 anos de Brizola e onde ele ainda nos toca forte

Vacilei vários dias antes de acertar o tom em que devia escrever sobre o centenário de Leonel Brizola, neste sábado.

Como não sou historiador ou sociólogo, mas – depois de 20 anos de convívio diário, creio que já tenho o direito de dizê-lo – um companheiro de suas lutas só posso dar o testemunho do que vi.

E vi, ao contrário do que muitos pensam, um homem gentil e tolerante.

Teimoso, sim, mas nunca inflexível e avesso a dialogar, até mesmo com um guri pretensioso como eu era aos vinte e poucos anos de idade.

Só não brigamos nunca porque ele tinha uma enorme paciência. E, para meu orgulho pessoal, uma enorme confiança naqueles que percebia movidos pelas ideias, não necessariamente iguais às dele, até porque eu tinha 36 anos a menos e uma história de vida infinitamente menor.

Brizola, como ele próprio se definia, era um “empírico”. Certa vez, disse-me que ideologia era como uma bússola, indispensável quando o céu estava coberto por nuvens, mas quase dispensável quando se podia ver o chão e o horizonte e por eles nos guiarmos.

Isso se traduzia quando escrevíamos parte dos 600 “tijolaços” – seus artigos, publicados como matéria paga nos jornais – sem ter sequer ideia do que seria dito, ao começarmos. “Nós somos os reis do improviso”, comemorava ele a enxurrada de palavras que lhe vinha, quando ditava os textos que eu anotava ou quando emendava – e muito – o que eu lhe levava escrito.

Dá saudade, sim, embora na época eu praguejasse pelas noites de sexta-feira inapelavelmente perdidas: depois de escrever, eu ia à gráfica, providenciar a fotocomposição do texto e depois ainda entregar a arte pronta para o jornal, o que significava chegar em casa com o dia já raiando.

Foi, talvez, o melhor que dele recebi: o aprendizado de que a vida devia ser austera, como antes já me ensinara meu avô, no Iapi de Realengo, um subúrbio operário do Rio de Janeiro.

Ou melhor, o segundo melhor, porque o melhor foi o da sintonia permanente com aquilo que representava os sonhos do nosso povão.

Brizola nunca esteve do lado errado da História, por mais que frustrações e mágoas pudessem torná-lo amargo e vingativo. “Somos aprendizes, porque socialista mesmo é o povo”, dizia.

O que não o impedia de andar na contramão do senso comum, de enfrentar a burrice ruminante e os emburrecedores contumazes.

Havia uma churrascaria abandonada na encosta do Morro do Cantagalo, pelo qual havia escalado uma imensa favela, que já se derramava sobre Ipanema. Queriam fazer de lá um futuro cassino; Brizola a transformou numa escola e num centro de convivência.

Brizola entendia de Carnaval como eu de astrofísica, mas acabou com a mutreta do monta-desmonta das arquibancadas da Sapucaí, contra a Globo e seu boicote.

Diziam, contra os Cieps, que “escola não era pensão” e não há hoje quem ouse abrir a boca contra as escolas de horário integral e uma alimentação e cuidados para nossas crianças.

Havia um furor de apoio a Sarney, com o Plano Cruzado; Brizola sujeitou-se a virar boneco de Judas em Sábado de Aleluia para dizer que aquilo era uma farsa eleitoral e foi Sarney quem ficou maldito pela traição.

Nunca deixou que o medo da incompreensão o impedisse de agir.

Brizola jamais deixou de enfrentar o “senso comum”, quando via razões para isso, e nem mesmo com Lula, quando este adotou uma linha moderadíssima, no início de seu primeiro governo.

Era 2003, ano anterior a sua morte e Brizola tinha pressa, talvez a mesma que Lula tenha hoje, quando se desdobra em garantir o apoio para que, no Governo, tenha o poder de agir com a rapidez que, 20 anos atrás, talvez pudesse dispensar.

Brizola amargou 15 anos de exílio. Lula, um ano e meio de prisão. Os dois souberam na carne o que é sofrer o peso da injustiça e do ódio político e, até por isso, o repelem.

Brizola chegou ao governo do Rio de Janeiro no ano do centenário do nascimento de Getúlio Vargas. Que Lula volte ao governo neste ano do centenário do nascimento de Brizola e teça mais um ponto nesta longa costura do fio da História, que trama e tece o inevitável futuro deste país imenso, ao qual sempre quiseram anão.

Melhor presente de aniversário, isso sei eu, o velho líder não quereria: o de ver a força do povo triunfar e reassumir as rédeas de seu próprio futuro.

Obrigado por tudo, Brizola.

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