A lição que não se aprendeu

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O passado é uma coisa danada, mesmo.

Pior que água, que acaba brotando de onde menos se espera, teimoso que só, sempre a nos lembrar de onde erramos, onde deveríamos ter tomado um caminho diferente para não darmos no abismo.

Esta semana, no meio da crise horrenda da Rocinha, quando ao fundo do tiroteio surgem tristes os arcos inconfundíveis de um Ciep da era Brizola, recebo um e-mail. Era o velho amigo jornalista Sérgio Caldieri, lembrando que, em 1985, a revista alemã Der Spiegel publicou uma reportagem sobre os Cieps e ele, assessor de imprensa de Darcy Ribeiro entregou o exemplar ao professor e lamenta: ” Não guardei uma cópia, a revista nunca apareceu e nem existe nos arquivos da Fundação Darcy Ribeiro”.

Disse ao Sérgio que tinha quase certeza do “fim” que a Der Spiegel tomou: virou um quadrinho numa pilastra da sala do apartamento de Leonel Brizola, em Copacabana, perto de outro, onde o NY Times dizia que, naquelas escolas, “a primeira aula era o café da manhã”.

Caldieri conseguiu o texto e enviou-me. Conta a história de Oswaldo, um menino que perambulava pela rua, alimentado pela caridade, tomando conta de automóveis.

Oswaldo, hoje, se está vivo, é um senhor de 45 anos, talvez pai de outros Oswaldos. Se saiu ou não da pobreza e do abandono e se não é este o destino de seus meninos e meninas, não sei. A corrente da estupidez é muito forte e aquele sonho foi interrompido por um Moreira que prometia o fim da violência em seis meses – mais ou menos como faz o Moro com o fim da corrupção com sua Lava Jato – e por um Gabeira que abraçava a Lagoa Rodrigo de Freitas, rumo ao ecoparaíso.

A Lagoa está limpa, tem até narcejas e capivaras, que bom. Mas igual não se pode dizer do cuidado com a nossa pobreza. Na coluna de Lauro Jardim, hoje, registra-se que os gastos governamentais em saneamento caíram 70%, semestre contra semestre, do ano passado para cá, em nome do saneamento, claro, do dinheiro a pagar aos rentistas.

A violência, bem, está aí, firme e forte, a servir de pasto aos ignorantes que acham que há uma guerra a ser vencida e não um povo a ser cuidado, dignificado, protegido e promovido.

Vai abaixo a matéria da Der Spiegel, que se infiltrou, pelas artes do acaso, nesta semana lúgubre.

Ao menos, Caldieri, Oswaldo e eu tentamos. E continuamos tentando.

A síndrome de Calcutá

Der Spiegel, agosto de 1985

Oswaldo Luiz Machado está dormindo na rua. Um banco, uma casa, alguns jornais antigos do lixo podem ser suficientes para os seus 13 anos de idade. Alguns quarteirões no bairro do Catete, no Rio de Janeiro, são sua vida. Ele ganha cerca de 20 cruzeiros por mês para cuidar de carros estacionados. Os garçons nos restaurantes da região dão-lhe comida.

Foram eles também os que atraíram o menino desabrigado para o novo edifício, que se ergueu no final de sua rua: elementos pré-fabricados de concreto elegantemente curvado, painéis amarelados brilhantes e grandes janelas em alumínio com o emblema inimitável do renomado arquiteto brasileiro Oscar Niemeyer.

Há quatro semanas, Oswaldo é um dos quase 600 alunos do primeiro “Centro Integrado de Educação Pública” (Ciep). Um dos conceitos escolares talvez mais revolucionários do Terceiro Mundo está escondido por trás do incômodo nome:
Em um ataque frontal ao empobrecimento da população, o Estado do Rio de Janeiro, em três anos, está construindo 300 escolas para cada 1.000 alunos, não só com educação , mas também quatro refeições por dia, bem como cuidados médicos e dentários. Além de centenas de jardins de infância e creches infantis estão sendo produzidos em uma “fábrica de escolas” a uma taxa de uma unidade por dia, num total de 2.000.

“Nós temos que desfazer o nó gordio”, diz o antropólogo Darcy Ribeiro, Secretário Estadual de Cultura do Rio de Janeiro, defendendo o programa “louco” como chamam seus opositores. “De outra forma, será a Síndrome de Calcutá”.
Assim, o cientista chama o pântano de fome, sujeira e violência, em que as grandes cidades dos países em desenvolvimento ameaçam afundar. “As pessoas nascem na rua, passam toda a vida na selva de asfalto, ou submergem no mar de casa”, reclama Ribeiro. “E, como resultado da mecanização na agricultura, mais e mais cidades estão chegando às cidades sem a menor chance de encontrar trabalho”. A esperança de uma vida digna continua sendo uma ilusão “.
De fato, o fornecimento de infraestrutura urbana na metrópole de sete milhões de habitantes do Rio de Janeiro é trinta vezes menor do que em Paris. E a desproporção aumenta. No ano 2000, a “cidade maravilhosa”, a maravilhosa cidade, acolherá 17 milhões de pessoas (na sua região metropolitana).

Acima de tudo, a educação escolar foi completamente negligenciada nas últimas décadas, aumentando a demanda simplesmente respondida com oferta reduzida. O dia escolar no Brasil tem apenas quatro horas e meia, de modo que dois turnos podem dividir as escassas salas de aula. Nas grandes cidades, é introduzida um terceiro turno, que limita o horário escolar diário a três horas.

“52 por cento das crianças deixam a escola antes da conclusão do segundo ano escolar, nem conseguem escrever e ler corretamente”, explica Riveiro. Na cidade do Rio, apenas 700 mil vagas escolares estão faltando, em todo o estado 1,5 milhão. 586.987 estudantes inscritos, apenas, comenta o Secretário da Cultura, em 1984 no estado do Rio de Janeiro, com 2350 escolas.

“Não estamos fazendo nada de revolucionário aqui”, diz Darcy Ribeiro, “estamos apenas reinventando a escola convencional”.

É assim que o programa Ciep fornece lições o dia inteiro. As crianças passam nove horas no complexo, que está equipado com uma biblioteca e quadra de esportes. Na primeira unidade, aberta há um mês em Catete, as crianças ficam emocionadas: “É divertido, é fantástico”.

Há, naturalmente, muitas crianças, que viviam dos gêneros alimentícios das latas de lixo dos restaurantes. Aqui você pode encontrar arroz, feijão, omelete, frutas ou leite em bandejas de aço cromado brilhante na moderna cantina.

As aulas são relaxadas por apresentações de teatro, pintura e esportes. E depois da ginástica tomam banhos – para muitas dessas crianças da favela algo inédito. “Aqueles que nunca tiveram a chance de jantar, alfabetização e higiene”, diz Teresa Graupner, da Secretaria de Cultura.

A coisa maravilhosa sobre todo o programa: o sistema funciona – pelo menos até agora. “Não é tão caro”, diz Darcy Ribeiro, “embora usemos a maioria dos recursos do Estado para fazê-lo”.

De fato, o governo anterior gastou 80% de seu orçamento em investimentos em áreas de construção urbana, ou em vias e avenidas onde lindas praias brancas e amplas avenidas abrigam apartamentos de luxo incomparável.
“Maravilhosa” é o Rio somente naquela borda sul estreita ao longo das praias que os turistas conhecem. Os milhões de misérias estão escondidos atrás das montanhas.

Um Ciep custa menos de quatro bilhões de cruzeiros (dois milhões de marcos). “Mas o Cruzeiro não é estável”, conclui Ribeiro, “mas eu estimo que a próxima expansão de 100 escolas custará cerca de 100 milhões de dólares”.

“Edifícios faraônicos” chama isso o jornal “O Estado de São Paulo”.

A oposição é surpreendida pelo programa cuidadosamente preparado e pelo planejamento financeiro preciso e teme a crescente popularidade dos reformadores.

Oswaldo Luiz Machado ainda está dormindo em casa, ainda cuidando de carros, mas agora apenas à noite, com um estômago cheio e limpo, de banho tomado.

Em breve, ele espera, esta vida também será uma coisa do passado: no último andar do centro escolar, dois apartamentos são organizados para doze crianças cada.

Oswaldo quer ser aceito lá.

contrib1

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13 respostas

  1. Darcy Leonel Brizola Ribeiro não deveriam morrer nunca. Saudade, saudade e eu leio O processo civilizatório e O Mulo pra matar a saudade e aprender sempre. Quanta tristeza heim Fernando? Tamo ferrado e eu vou morrer em Estado Ditatorial… Mais uma vez obrigada Fernando nosso querido jornalista. Amo você!

  2. Com os governadores e prefeitos abençoados pela maior empresa criminosa deste país (plim – plim), a velha máxima dessa desgraça à nação foi seguida a risca, ao invés de cieps eles seguiram fazendo “escolinhas”.

  3. Com estes fascistas golpistas no poder(PMDB/PSDB e demais) o povo nunca terá direito a nada, nem ao básico. Eles não apreendem e nunca aprenderão. O negócio deles é assaltar o povo. E depois mandam a puliça matar o povo.

  4. Curioso é que, neste blog, pouco, muito pouco de fala da passagem do cleptofuracão Sérgio Cabral pelo estado do RJ e que, em grande parte, produziu as desgraças que se veem atualmente. Rememoram-se fatos de há 40, 30 anos, mas aqueles desenrolados (ou enrolados?) sob os (des)governos SC e Pezão repousa um estranho silêncio. Aliás, estranhíssimo. Talvez acredite-se, aqui, que os culpados sejam os tresloucados “black blocs”. Aliás, como é de amplo conhecimento, foram eles que concederam isenção fiscal à Thyssen-Krupp, à Peugeot e à Ambev, que rapinaram os cofres do estado do RJ, empenharam indevidamente a renda dos royalties do petróleo etc. etc. etc.

    1. Sergio cabral é amigo de aecio neves e ate casou com uma prima dele…

      E por que não falar da justiça que arquivou em o processo de denuncia feita por Marcelo Alencar de enriquecimento ilícito de Sérgio Cabral em 1998?! A denúncia era dessa mesma mansão que foi a leilão…a justiça “comeu mosca” ou mais uma vez fez vista grossa pros seus apadrinhados?! E onde estava a rede globo que não fez 18 horas de reportagem no JN?!

      http://www.diariodocentrodomundo.com.br/cabral-e-aecio-amigos-contraparentes-trajetorias-iguais-por-que-so-um-esta-preso-por-joaquim-de-carvalho/

      https://www.google.com.br/amp/s/www.pragmatismopolitico.com.br/2017/02/sergio-cabral-preso-aecio-neves-solto.html/amp

  5. Quando a professora pediu que fossemos p/ casa foi quando a cidade incendiava, Getúlio tinha se suicidado. Antes do golpe de 64 tínhamos Brisola governador, ao lado dos quartéis da Brigada que seriam bombardeadas pela aeronáutica que aderiu ao golpe. Ficamos eu e meu irmão em um celeiro ouvindo a voz da legalidade em que Brisola dava as orientações, tinha 13 anos e graça as indicações do meu pai sabia a quem acreditar.

  6. Brizola e Darci são os meus maiores ídolos da política brasileira. E você uma das minhas leituras prediletas. Parabéns! Abraço

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