O golpe de 1º de abril. Por Luiz Costa Pinto

Tenho evitado levar água ao moinho diversionista de um suposto “debate” sobre algo que não é suposto, mas fato: que 1964 foi um golpe contra a democracia – e portanto, contra a população – e a data inaugural de uma longa ditadura. Foi a tesoura com que tentaram cortar o fio da história de lutas e progressos sociais do povo trabalhador, um fio que pode ser embolado, amarrado, mas que nunca será rompido. Apesar disso, abro exceção ao vigoroso  texto do jornalista Luís Costa Pinto, escrito sem afetações e intelectualismos complacentes e relativistas. A sua leitura é destas que faz a gente se confortar por permanecer decente.

O golpe da piada pronta

Luís Costa Pinto, no Brasil 247

Por 21 anos, entre 1964 e 1985, o Brasil viveu sob uma ditadura militar. Ela foi instalada por um golpe clássico, daqueles em que chefetes de quartéis imbuíram-se da autoridade dos guardas da esquina, subiram nas carcaças de tanques que tinham sob suas responsabilidades e ameaçaram os subordinados caso não os seguissem. Depois meia dúzia ou uma dúzia desses, vá lá, meganhas fardados, conseguiu suspender as atividades do Congresso Nacional. Por fim, subjugaram o Supremo Tribunal Federal. O presidente constitucional da República, que assumira o mandato anos antes em razão da renúncia do eleito, num gesto desesperado por união nacional e para resguardar a integridade de seu povo evitando uma guerra civil, recusou a resistência armada que lhe foi ofertada e exilou-se no Uruguai.

Tudo começou assim.

Violando a Constituição de 1946, que enterrara outro período ditatorial, o rábula servil que ocupava a presidência da Câmara dos Deputados, Ranieri Mazilli, declarou a vacância do cargo de presidente na madrugada de 2 de abril, na esteira de uma sessão burlesca chamada por ele e iniciada a 1º de abril de 1964 enquanto João Goulart voava para Porto Alegre. Xingado de “canalha, canalha” por Tancredo Neves no plenário do Parlamento, Mazilli usurpou a cadeira presidencial e convocou uma eleição indireta no prazo de 10 dias.

O pleito ilegítimo consagrou o último dos marechais de campo do Exército brasileiro, Castello Branco. Investido no cargo, Castello Branco conservou um pouco de juízo e quase nenhuma ascendência sobre as tropas sublevadas. Tentou uma transição para devolver o poder aos políticos, mas sucumbiu à tal noite de 21 anos. A íntegra desse roteiro já veio a lume por meio de narradores diferentes:
• primeiro, pelos vencedores imediatos, aos quais sempre cabe o rascunho dos fatos históricos.
• Depois, pelas penas adocicadas dos títeres da transição lenta, gradual e segura iniciada com o ditador Ernesto Geisel e concluída pelo hábil e colaborativo José Sarney.
• Por fim, ao resgatarem nas urnas o poder usurpado, sociais-democratas vencidos em 1964 começaram a reescrever a História com cores mais vivas e realistas depois da ascensão de Fernando Henrique Cardoso. Esse ciclo final, e justo, vinha se completando no período de Lula e de Dilma na presidência. Foi abruptamente interrompido pelo golpe parlamentar de 2016 que devolveu a turma da pena adocicada – em versão ainda mais dócil com os coturnos do que nos tempos de Sarney – ao Planalto.

A chegada do energúmeno e microcéfalo Jair Bolsonaro ao poder com a autoridade e a legitimidade do voto popular conferiu ousadia ímpar aos boçais que desejam, agora, jogar fora a História escrita anos a fio a partir da Comissão Nacional da Verdade e determinar a aposição de uma fake news no lugar do capítulo vergonhoso da ditadura militar em nossa biografia nacional: a versão falsa, torpe, pedestre, de que não houve nem violência física, nem mortes, nem violações constitucionais e à ordem constituída no período 1964-1985.

Os mortos e desaparecidos vítimas da bestialidade dos ditadores fardados e de seus jagunços nos DOI-Codis, nos Esquadrões da Morte, nas Operações Bandeirantes, nas delegacias, nos porões, nas esquinas e até mesmo em aparatos para-estatais mantidos em algumas empresas a fim de sustentar o regime somam 434 cidadãos. A herança maldita que se abateu sobre nossa sociedade aniquilou ao menos duas gerações de brasileiros que cresceram com medo da ação política e com nojo dos políticos. Medo e nojo quem nos traz são as ditaduras, assim nos ensinou Ulysses Guimarães no discurso em que promulgou a Constituição de 1988. E é a Constituição de 1988, lápide definitiva da ditadura sanguinária dos militares, que desautoriza o Carnaval fora de época que Bolsonaro deseja fazer nesse 31 de março de 2019. A data o flagra momentaneamente no exercício do poder.

Presidentes da República, nas democracias, podem muito. Num sistema imperfeito como o nosso, em que o Poder Executivo é hipertrofiado ante seus congêneres, pode mais ainda. Há limites, contudo, para esse excesso de proatividade presidencial e cabe aos outros dois poderes – Legislativo e Judiciário –delimitar a zona de exclusão das iniciativas sem lastro constitucional dos presidentes. Mesmo que estes tenham sido legitimamente eleitos. Afinal, sabemos todos, a categoria mais infame de idiotas é a dos idiotas com iniciativa. Esses são mais perniciosos aos contemporâneos porque exalam venenos tóxicos a cada atitude bárbara que tomam.

Bolsonaro não foi eleito por 39% dos brasileiros aptos a votar em 2018 para reescrever a História do Brasil. Ele foi eleito para tentar escrever ao menos um parágrafo da própria biografia, trabalhando depois para colá-la à colcha de retalhos que é a narrativa de nossa República – ainda assim se o povo julgar que merece. Não há nada a comemorar nas trapaças que a História nos fez naquele 1º de abril de 1964 quando o general Mourão Filho surgiu guiando uns tanques em direção ao Rio de Janeiro na rodovia que liga a cidade a Juiz de Fora (MG), a não ser a grande piada contada nos salões das casernas: a de que se tratava de um “movimento”, uma “revolução”, e não um golpe de Estado. Foi golpe. Foi um golpe clássico. No fim daquele dia inaugural da bestialidade, se houve grandeza e espírito público, eles repousaram em Jango. O presidente deposto recusou a resistência armada que Leonel Brizola lhe oferecia a partir do Rio Grande do Sul e que poderia sublevar algumas unidades no Nordeste também. Teria sido um banho de sangue. Só os facínoras e os débeis mentais celebram ditaduras e regimes de exceção.

Como voltar atrás, recuar sem vergonha de tê-lo feito,desdizer o que dissera, autotraduzir as próprias palavras são atos praticados por Bolsonaro sem se sentir em situação vexaminosa e sem enrubescer sequer os lábios emaciados, descoloridos, lembrando lábios de defuntos emaciados, que nos oferece na TV todas as vezes em que nela aparece, há tempo para ele anunciar que o apelo à celebração do golpe de 1964 foi uma chula, inoportuna e malfeita piada de 1º de abril.

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16 respostas

  1. O Brasil deve ser o único país do mundo onde o manda-chuva de plantão reserva uma determinada data para a comemoração dos crimes mais hediondos já perpetrados em sua triste história.

  2. É, realmente, um bom texto, inclusive com a observação reiterada do grande ‘gesto’ de Jango em evitar uma situação talvez “pior”, de que sempre desconfiei (mas nunca me conformando com a consequente grande noite brasileira que foram os anos de chumbo). “Microcéfalo” para o inominável micto é ótima. Porém, há uma questão aí que é dada como certa e que no entanto pode ser revista com o tempo, pela História. Se foi ou não legitimamente eleito, pois, como já disse várias vezes, além das flagrantes irregularidades e microgolpes durante a campanha presidencial, a maquininha caixa-preta do TSE não é tudo isso de confiabilidade, não. Por isso é “caixa-preta”, enigmática, misteriosa. Mas o problema mesmo é que tudo isso, brinquemos (ou não) com o infortúnio, não é um simples 1º de abril, Dia da Mentira: O Brasil e seu povo está vivendo isso, morrendo cada vez mais. O que fazer, já que ninguém parece fazer o que quer que seja ? … . . . …

    1. Antes das eleições de 2018, se não for delírio meu, o TSE não tinha fechado um contrato com uma empresa americana para “fiscalizar” o sistema de nossas urnas? Alguém lembra disso?

  3. Está se vendo que o sonho de consumo do capitao é ser um ditador. Em sua loucura ele tem veneração pelas ditaduras. Afora as fake news e a fraude no resultado das eleições, a facada em Juiz de Fora foi determinante para ele se eleger. Nunca comentei nada sobre tal facada, pois é visível que Adélio Bispo tem problemas mentais. Mais hoje, ao saber pela Folha de São Paulo – num artigo sobre a ditadura – que foi de Juiz de Fora onde partiu a primeira marcha dos rebelados sob a liderança do conspirador golpista general Olímpio Mourão Filho, uma luz acendeu no meu cérebro. Adélio Bispo pode ter sido vítima de alguma espécie de lavagem cerebral e pode ter sido escolhido exatamente porque tem problemas mentais. Leiam sobre as experiências que a CIA fazia na década de 60 dentro do projeto monarca. Eu pergunto onde será que eles já chegaram com tais experiências, pois duvido que tenham realmente abandonado o projeto. É inexplicável a ação de terroristas suicidas em regiões estratégicas para os EUA e Israel. Eu digo que, por debaixo dos panos, EUA e Israel são uma única nação. Em outras palavras: desconfio que a CIA pode estar envolvida na tal facada. Coincidências para mim tem limites. Temos que verificar desde quando Adélio passou a fazer postagens políticas na internet, porque, pode ter sido a partir de 2016, que a eleição do capitão passou a ser arquitetada. Não custa lembrar que foi neste ano que o capitão foi batizar em Israel. Por outro lado, tudo indica que hackeres da CIA podem ter colocado um ‘santinho’ no sistema para desviar votos e alterar o resultado das eleições no TSE. Vide as pegadas num dos episódios da primeira temporada da série americana SeaQuest, senao me engano, o Bala Fotogênica. Agora, eu tenho razões lógicas para dizer que a tal facada no capitão é suspeita sim e pode ter sido fruto de um complô externo muito sofisticado. Até mesmo o capitão pode ter sido escolhido porque sofre das faculdades mentais e Juiz de Fora pode estar inserido num processo de sugestionamento mental para ele se julgar um predestinado a ser ditador do Brasil. Se eventualmente o capitão tinha ou tem alguma doença intestinal , isso também pode ter sido um fator para a sua escolha como marionete principal junto com o fato dele ser militar da reserva, pois um governo ditatorial precisa das Forças Armadas para ancoura-lo. Razões para um complô tao sofisticado envolvendo o Brasil: Venezuela e embaixada em Israel. Ernesto Araújo Araújo e Olavo de Carvalho podem também estarem inseridos no contexto já que ambos são visivelmente doidos. Sigam essa trilha. Ela parece surreal mais não é. Eu mesma estou assustada com o babado – forte demais para o meu gosto.

    1. Sugiro que você procure no Google pela expressão “facada no mito”, e vá em vídeos.

      Há no Youtube um vídeo que levanta muitas dúvidas se esse esfaqueamento realmente aconteceu. Para se ter uma ideia, o vídeo tem quase 57 minutos de duração, analisando as imagens (que na vida real duraram um minuto) quase que quadro-a-quadro.

      Apenas para matar sua curiosidade, adianto que o vídeo sugere que Adélio não agiu sozinho, foi protegido de linchamento pelos seguranças do Boçal Nato (convenhamos, atitude nobre demais para quem prega que bandido bom é bandido morto, não?), e ainda lembra daquela coisa suspeita que aconteceu dias depois em Juiz de Fora, quando policiais paulistas e mineiros trocaram tiros no estacionamento de um hospital, devido a um carregamento enorme de dinheiro vivo.

      Tire suas conclusões.

      1. Eu, desde o primeiro momento, já duvidava da facada. Depois de ver esse vídeo, qualquer resquício de dúvida desapareceu

      2. À época do esfakeamento, dois leitores do GGN levantaram um fato pitoresco, e que tem passado batido: Um dos leitores havia entrado na página de Facebook de Adélio e visto a lista de páginas que ele curtia e frequentava. Logo depois, com o suspeito detido, a página fica indisponível e, quando volta, não aparece mais que ele segue uma determinada página de extrema direita. Infelizmente o sistema de comentários do site mudou e não consigo localizar tal conversa.

  4. Uma miúda correção ao fantástico texto do Luís Costa: foi Auro de Moura Andrade, como presidente do Congresso Nacional, quem declarou a vacância da Presidência da República e foi PESSOALMENTE ao Palácio do Planalto dar posse ao Mazilli.

    O conluio entre os dois é óbvio.

    Tal ~heroísmo~ lambe-botas do Auro Moura lhe valeu DOIS logradouros em sua memória, em São Paulo-SP (onde mais…) um deles uma ostensiva provocação às vitimas da ditadura de 1964: é a avenida que ladeia o Memorial da América Latina.

  5. Um exército com mais de 100 mil homens para abater 434 pessoas, esmagadora maioria desarmada.

    Foi a maior assimetria e desproporção de forças da história, que nos legou hiperinflação, dívida externa exorbitante, desemprego e…a Rede Globo como monopólio da informação mais poderoso que o Pravda nos tempos de Stalin. Ah, mas o “comunismo” foi vencido.

  6. O Bolsoasno já nem precisa de que alguém o desminta, ele mes.o faz isso da forma maos descarada e sem sendo de rodículo possível.
    Se houver um concurso mundial de patetas, esse imbecil ganha sozinho todos os primeiros dez lugares!

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