Olhar focado para não ver

Nada pior, para as coletividades, que a fragmentação do saber e, portanto, da própria (in)capacidade de compreender o que as cerca.

Nos últimos anos, esta fragmentação virou sinônimo da falsa “inteligência prática” em quase todos os campos da vida social, na contramão do que a história da inteligência humana demonstra e não à toa expressou na universidade – de universo, pois não? – o seu estuário.

Aliás, exemplo desta fragmentação é considerá-la questão meramente acadêmica, sem conexão com nossa maneira de viver coletivo.

Aceitou-se, em nome da produção ou alheaento dos conceitos, esta repartição falsamente polar, expressa em bobagens como “sou de Humanas, não de Exatas”, como se o conhecimento não fosse uno; “especialidades médicas”, como se o corpo humano fosse feito de escaninhos; “gestores”, como se a história não ensinasse que administrar não fosse diferente de andar de bicicleta olhando para o chão; “jurisprudência”, como se as relações sociais – o direito – não fossem vivas e mutantes; “identitários”, como se a condição de igualdade dos seres humanos não fosse apenas a consequência e não o princípio essencial da vida coletiva.

Vamos, como quase sempre na história, nos limitando por uma visão de mundo composta de “verdades” a que o tempo, cedo ou tarde, acaba revelando serem falsidades grotescas.

Não pretendo maiores digressões sobre o tema – para quem as quer, recomendo o antológico texto de Darcy Ribeiro, Sobre o Óbvio -, mas apenas pensar, com a natural angústia daqueles a quem o tempo vai levando para as colinas, sobre o que se passa em nosso país.

Diz-se – e louva-se – que o novo governo será “técnico”, em contraposição ao “político”, que é exibido como sujo, mesquinho, quase uma malandragem de vagabundos preguiçosos. Quando não – ou simultaneamente – “esquerdistas” que se opõem a um cristianismo particular que se expressa nas novas tábuas da lei, os memes e os tuítes.

Os próximos meses – quem sabe, anos – demonstrarão o desastre da estupidez  estar engolfando a vida brasileira. E, para não sermos pretensiosos, em boa parte também o mundo.

Os mecanismos essenciais independem do que sobre eles se diz, como o fato de que a Terra orbita o Sol ignorou completamente a ideia longeva de que era fixa e central. Na vida das sociedades – e das nações, sua representação – seguimos vivendo, como desde que descemos das árvores, regidos pelas engrenagens da produção, da acumulação de riquezas, e da capacidade de defendê-las do saque.

É preciso, por isso, conservar a lucidez e, por conta dela, os caminhos da esperança.

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18 respostas

  1. Talvez por isso, ou por muitas outras razões que se me escapam, as universidades, lugar de pensar ativamente, de se contestar, portanto, foram (são) tão passivas, que permitiram toda essa avalanche de inverdades, ditas e reditas o tempo inteiro até que se consumasse este horror que vivemos.

    O sentimento individualista, o academicismo pelo academicismo, a deseducação fizeram de nossos professores ( com raríssimas exceções) uns imbecis que não sabem fazer mais que reproduzir com pompa de intelectuais o que os verdadeiros pensadores construíram.

    Essa coisa do capitalismo é uma praga.

    1. O mundo acadêmico, inclusive estudantes, foi vítima de manobras diversionistas baseadas em bandeiras de gênero e planetárias, para fugir aos problemas de classes, e em super-ilusões niiliistas, que alcançaram níveis inimagináveis na Rede. Mas reagiram muito bem a isso. Só que a mídia não deu nada e quando deu não deu como devia dar.

      1. Devo discordar… As universidades nunca tiveram um canal direto com o povo. Aliás, esta é uma das críticas mais ferrenhas contra essas instituições. As pessoas alcançam a academia apenas para serem beneficiadas com grana e viverem orgulhosas de terem um título para chamar de seu.

      2. A politica identitaria, que segundo David Harvey foi usada pelos ideologos do neo-liberalismo para dividir a esquerda e a sociedade (como sempre, dividir para reinar) se tornou a “esquerda” do neo-liberalismo e esqueceu os compromissos tradicionais secularmente definidos como de esquerda, e os valores de esquerda. Foi por isto, alem de um outro ponto, que amplos setores da classe trabalhadora na Europa se afastaram e comecaram a abraca agendas mais ‘a direita.

        O outro ponto, foi o fato da Social-Democracia europeia, e esquerda, ter abandonado a agenda de esquerda e abracado aspectos importantes da ortodoxia neo-liberal, como fizeram Pierre Mitterrand na Franca, Felipe Gonzalez na Espanha, Tony Blair no Reino Unido, alguem que nao me lembro, na Italia e em Portugal, o SPD e ate’ os Greens, na Alemanha (FHC no Brasil e Bill Clinton nos Estados Unidos, na decada de 90). Como a politica de identidade mais tarde, se tornaram a “esquerda” do modelo neo-liberal. E foi por ai’ que o PSOL foi mais bem votado no Leblon do que na zona norte, na eleicao para prefeito. Nao tem muito contato com a massa trabalhadora, mas muito contato com a classe media academica e de formacao universitaria.

        Transgenderismo e LGBT, direitos humanos interpretados de uma certa forma, feminismo radical e ate’ algumas vertentes do ambientalismo, nao trazem nenhuma ameaca ao sistema capitalista. Pelo contrario. A Globo, nesses aspectos, pode ser considerada altamente progressista – pois e’ muito aberta a quase todos estes valores.

        1. Humberto, aí está uma marxista comunista excepcional; vida inteligente nas redes de esquerda. Ela esclarece esse debate, muito cabeludo e parcial, sobre as ditas “pautas identitarias”.
          Vale a pena ver os dois videos e os argumentos muito bem embasados. Espero q 2019 traga muitas pessoas como a Sabrina Fernandes????????
          https://youtu.be/4b3StHWY1ms

          1. Muito grato, Atineli, estudarei com atencao o video que voce recomenda, assim que tiver um tempo disponivel. Abraco.

    2. Acredito que o maior problema da academia – e o que também me afastou desse centro – foi a adoção de um sistema industrial de produtividade incompatível com a verdadeira produção do saber. Você é obrigado a escrever x quantidade de artigos, obrigado a atingir x números de publicações para atingir determinados objetivos… É ridículo. Você escreve obrigado para atingir pontos, de forma superficial, e não porque, de fato, descobriu algo novo, algo que faz sentido ser publicado, algo que te instiga a a escrever e a defender… Enfim

    3. O mundo academico tambem esta’ abarrotado de ervas daninhas, intelectualismos, textos irrelevantes e pretensiosos, e uma pratica basicamente teorica, que nao tem relacao quase nenhuma com a realidade circundante. Falta o engajamento com a sociedade ao redor. Tem, claro, as raras e honrosas excecoes no contexto geral.

  2. Brito, que belo! Melancólico também. É preciso arrancar a esperança lá do fundo da alma porque com esse governo, está difícil!

  3. Já me acostumei a andar entre zumbis. Mas estou sempre de olho e preparado para correr deles a qualquer momento, pois minha adrenalina defensiva chama-se sebo nas canelas. Sei que agora eles estão mais calmos, um pouquinho apreensivos, mas embora calados ainda têm grande esperança de que quando Bolsonaro assumir a gasolina e o dólar voltem a custar 2 reais, para correrem à vontade e viajarem duas vezes por ano a Orlando. Não sei o que será dessa turma se isso não acontecer.

    1. Ouso achar que a coisa ficou tão braba dentro das cabeças* que mesmo frente a uma oferta de Miamis alegres como contrapartida de um governo petralha, escolheriam o inferno. (*mas não estou falando do povo, estou falando da camada_craca_média que pensa em dólar e que a culpa seja da Dilma.)

    2. não vai acontecer. Mas entre a percepção de que foram lesados e pensar vai uma distância grande. Muita gente ainda não desceu do salto, apesar das perdas já palpáveis

      1. Mark Twain disse que “e’ mais facil voce enganar uma pessoa do que convence-la de que foi enganada.”

  4. Tiveram 2 anos pra nos domar, com um governo usurpador, que retirou direitos, destroçou instituições, alienou patrimônio com o patrocínio luxuoso das togas, de todas as instâncias. Lutamos contra poderes externos, muito bem articulados com lesas-pátria tupiniquins, comprados com migalhas e sempre prontos a nos jogar areia nos olhos, com ações espalhafatosas e mentirosas. O “eleito” é apenas a continuação do teatro de horrores, só que mais tosco e ridículo. O vice está a postos, o das araucárias também. Podem juntar a fome com a vontade de comer e acabar de vez com o país.

  5. Pode parecer desesperador (o texto), mas vejo como um alerta. Há que se saber dormindo para querer acordar…

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