O exílio sem sair de casa. Por Nílson Lage

Para homens e sociedades, querer e acreditar ser constituem pressupostos para ser de fato – porque eles mesmos constroem, em grande parte, dia a dia, a própria realidade. A imagem espontânea que um povo faz de si mesmo – fundada no desejo que reflete experiência histórica – deve ditar o sentido geral que corrigirá desvios e manterá coerência.

Nasci em país católico de um Deus tolerante. Éramos mestiços e orgulhosos da “fusão de três raças tristes”. Nossas mães ou avós, reais ou postiças, as mulheres de que mamamos, que nos embalaram, velaram por nós e nos amaram foram tomadas de povos da terra ou vieram escravas em porões de navios: elas nos legaram enorme capacidade de adaptação e aceitação do outro, o anseio de abraçar o mundo com o carinho que todos os povos merecem e o respeito discreto às diferenças, sem depreciá-las ou exaltá-las.

Definíamos fronteiras entre vidas pública e privada: Oswaldo Cruz, eminente cientista, era mulherengo, Santos Dumont misógino, Mário de Andrade homossexual, Getúlio Vargas recebia Virgínia Lane às terças-feiras à tarde, sem agenda. Protegidos pela discrição, de temas assim só se falava à boca pequena. Qualquer par que vivesse junto era casado; o reconhecimento legal, o rótulo, algo socialmente irrelevante.

Quando nos fizeram quebrar o espelho, perdemos o norte e, com ele, a autoestima e a identidade, porque rumamos sempre para o que, no fundo, rejeitamos: o formalismo, o individualismo, o racismo, a xenofobia, o aguçamento dos conflitos culturais, a repulsa ao diferente e a exibição da intimidade.
O país que se inaugura daqui a dois dias não é mais a minha pátria: é um frankenstein mal costurado, de face estrangeira.

Como chegamos a isso?

Talvez ao aceitarmos a pecha de hipócritas; jogaram-nos no rosto a desigualdade que se agravou com o tempo, porque a riqueza, distribuída sem controle, beneficiou alguns à custa dos demais; deram a ela expressão étnica. No entanto, se nenhum povo é como se imagina, tínhamos passado que nos validava: Machado, Cruz e Souza, Rebouças, venerados sábios e heróis negros, quando não os havia em outra parte; o exército de Cândido Rondon, que não exterminou índios, mas os protegeu; a aspiração constante de igualdade na produção intelectual.

Reduziram nossa História a casa grande-e-senzala, coisa típica dos ciclos da cana-de-açúcar, do café no Sudeste e de algumas culturas regionais, como o algodão. O modelo não se aplica às cidades das Minas Gerais, onde as relações inter-raciais eram mais íntimas e estáveis, ou às periferias urbanas que se formavam: a quase toda Amazônia, ao sertão do ciclo do gado, ao pampa, à Bahia e à maior parte do Nordeste. Com essa distorção suprimiram o índio – não o que preserva a cultura originária, mas o que, em todo o território, está em nós, no que comemos, no que pensamos e, sobretudo, no que sentimos.

Talvez, também, nosso fracasso decorra de termos importado, com alguns dos muitos europeus migrantes que recebemos francamente, arraigadas doutrinas exóticas – fascismo, nazismo, franquismo, salazarismo – que viriam consagrar o autoritarismo das velhas elites e contagiar segmentos importantes dentre os formadores de opinião, principalmente em São Paulo e estados do Sul.

Ou fomos colhidos no processo de substituição do clero aberto à realidade social por hierarquia mais rígida, durante o longo pontificado de João Paulo II; isso abriu espaço à vertiginosa invasão de igrejas corporativas de matriz norte-americana, vorazes por dinheiro, armadas de psicologia comportamentista, declaradamente cristãs mas que se fundamentam no Antigo Testamento para pregar a intolerância e o ódio ao gentio.

São, pois, vários os possíveis motivos de meu país ter-me deixado, virtualmente,apátrida, magoado. Mas tenho certeza de que, por isso ou por aquilo, não soubemos defender nossa preciosa e exclusiva herança.

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23 respostas

  1. É isto, não soubemos. Também porque enfiam nas nossas cabeças que o que vem de fora principalmente (Europa e States) é que têm valor.

  2. O país continua aqui, não podemos ser quarenta e sete milhões de exilados num mesmo país. A face desse começo é feia, mas é só a face. Nosso coração ainda bate igual, ainda temos capacidade de querer e ser, ainda construiremos, em grande parte e dia-a-dia, a nossa própria realidade. Essa face feia não é inédita, esteve cultivada junto com a bonita o tempo todo.

    1. mariana szasz, boomm (…) “Essa face feia não é inédita, esteve cultivada junto com a bonita o tempo todo”.

  3. Meu vizinho emprestou sua casa aqui na praia prum parente também gaúcho.
    Ele tem em sua limosine (um KA) 3 adesivos dos Bostonauro.
    Logo neste fim de ano que receberei 4 amigos, todos de Esquerda…
    Haja tolerância.
    Será que ele tolerará as canções cubanas, de Chico, de Martinho e os sambas de enredo do Rio?

    1. Não. Te prepara para o pior. Muitos por aqui ainda não se convenceram de que levamos uma surra em 35, que o levante era de latifundiários escravagistas, que os mesmos desarmaram um brioso grupo de combate formado só por negros para os mesmos serem assassinados por Caxias (e assim não precisarem cumprir o prometido de lhes dar alforria), que Caxias cagou para os tais Farrapos e nem assinou o armistício, que os latifundiários foram indenizados pelas perdas humanas en quanto os negros continuaram escravos, que os donos das enormes sesmarias que receberam de graça desde a guerra guaranítica (que deu origem ao genocídio do povo guarani) eram analfabetos, e que hoje nos estádios de futebol ao tocar o hino nacional os fanáticos fascistas berram histericamente o tal hino riograndense (ironicamente escrito por um maestro federal que estava preso na época). Enfim, é um povinho imbecil que acha que fica melhor se separando. Que bom que consigam, assim me voy de acá.

  4. Quanto ao papa João Paulo II foi ele que destruiu a teologia da libertação. Quando eu nasci o papa era o papa Paulo VI, e se não me engano foi o ante penúltimo o que olhou verdadeiramente para os pobres do mundo. Mas o papa o papa Argentino é o melhor da minha época.

    nunca imaginei que um dia eu ia admirar um argentino , e papa. ! Gosto muito dele.

  5. Não soubemos, sim. Mas que possamos aprender, resistir e reafirmar nossa preciosa e exclusiva herança em uma realidade acima do mal que nos espera.

  6. Triste. Parece que o voto de nosso povo no coiso foi de ódio a si mesmo. De ter sido convencido de que tem que ser a imagem do que pregam nos púlpitos das igrejas, uma coisa difusa e sem nexo, própria de fanatismos. Emblemático é o ódio visceral que devotam às religiões de matriz africana, que conferem identidade a boa parte da população. Nosso povo está em uma crise de identidade: não pode ser o que é, e não tem idéia de no que se tornar.

    1. Execelente observacao. Setenta por cento da populacao, os que votaram no Bozo (39 %) e os que escolheram deixa-lo passar, ao decidirem que ele seria melhor do que um petista como o Haddad (31 %), estao mais perdidos do que cego em tiroteio com relacao ‘a realidade das coisas. Foram, e sao, pesadamente condicionados por fake news da midia golpista e depois pelos mecanismos de manipulacao bolsonaristas. Mas, um dia a Realidade batera’ em suas portas, e dizem os espiritualistas, “quem nao despertar pelo amor, despertara’ pelo sofrimento.”

  7. Desculpa, mas em que vespeiro não poderíamos ter mexido? Nao deveríamos questionar os muros da esfera pública e privada? Da sagrada intimidade dos lares que sempre espancou mulheres, que abusou e escravizou meninas desde muito cedo como empregadas domesticas? O que deveriamos continuar negligenciando? O abismo da qualidade de vida entre negros e brancos sob uma máscara falsa de que nao há racismo no país? Pois é. Nós mexemos nesses locais sagrados e intocáveis da organização social brasileira. Que besteira fizeram os negros, as mulheres e os gays ao mexer com essa sagrada organização que sempre sobreviveu a suas custas. A culpa é dessa gente progressista que sofre na pele a discriminação e que resolveu apontar a hipocrisia da sociedade brasileira. A culpa nao é dos hipócritas, dos que querem continuar massacrando mulheres, negros, gays e índios. É, pois, dos massacrados, que um dia resolveram reivindicar pela sua própria VIDA, para algo além de uma mera sobrevivência.

    1. Sem duvida, esta foi uma das razoes para a reacao troglodita da classe domnante que vive de rapinagem,”Nós mexemos nesses locais sagrados e intocáveis da organização social brasileira”.

      Mas outros locais sagrados que o PT mexeu foi o distanciamento cada vez maior da tutela norte americana, aproximacao com a China e o BRICS, descoberta do pre-sal e o modelo noruegues de exploracao do mesmo, isto e’, para o povo brasileiro, ao inves da multis petroleiras e norte-americanas. Creio, inclusive, que sem uma participacao robusta dos gringos no golpe, a oligarquia rastaquera nao teria a coragem de dar o golpe. A Camara de Comercio Brasil-Estados Unidos nao a acompanharia (como acompanhou) sem a certeza de cobertura e involvimento do governo de Washington. Covardes que sao, os banqueiros
      e empresarios brasileiros que vivem de mamar as tetas do estado, sempre socializando os prejuizos e privatizando os lucros, e outras canalhices mais, jamais entrariam sozinhos nesta aventura criminosa e irresponsavel ao extremo sem participacao, protecao e garantias dos aliados americanos.

      1. Correto, é por aí mesmo. Ainda bem q temos Lula e Jessé Souza. Espelho quebrado: hora derradeira de luta e resistência. Somos milhões de Lulas!

      2. Correto, é por aí mesmo. Ainda bem q temos Lula e Jessé Souza. Espelho quebrado: hora derradeira de luta e resistência. Somos milhões de Lulas!

  8. Prefiro a hipótese de que fomos atacados em uma guerra híbrida. Fomos presentemente dominados. Eles terão que preservar a dominação, o que não é fácil.
    Estamos aqui firmes e fortes e resistindo.
    Quem tem um LULA, idéia e pessoa, tem um capital enorme para enfrentar o desafio que enfrentamos. Vamos vencer. Estes bandidos cairão, nem que seja de podres.

  9. Eu saio na rua, seja pra comprar pão ou ir a uma quadra – vejo tantas pessoas cordiais com sorrisos lindos e crianças brincando – e custo a crer que esse é o país e cidade que entre um professor e um neofascista, escolheu um neofascista.

    Não entra na minha cabeça que morando em um bairro de grande historico de luta sindical, soltaram fogos com a consumação de um candidato que, sem qualquer decoro, acabou com o ministerio do trabalho e pode também surrupiar o 13.

    Lula, grande Lula, ainda longe do cárcere, disse a todos aqui a importância de zelar por todos os direitos, mesmo o que parecem mais mundanos. Marighella, aqui, fez um discurso de luta contra um governo opressor. Será que essas pessoas esqueceram? Eu não esquece.

  10. Esse texto é totalmente equivocado. O professor, perdoe-me, ainda está falando de um Brasil q nunca existiu. Nunca houve isso tudo aí descrito na realidade da vida dura do povo sofrido e escravizado. Estou mais de acordo com a Marilena Chauí e o Jessé Souza. Estamos sentados sob os escombros das mentiras criadas e fomentadas pelas “vacas sagradas” da intelligentsia brasileira q nunca permitiu a inclusão da senzala; q sempre adotou e implementou as regras da elite oligarca para o controle e extermínio dos pobres e pretos. Esse texto é triste pq fala de “literatura” e está muito longe da real experiência vivida do povo brasileiro. O Brasil está desnudado, a máscara caiu e agora é q teremos q construi-lo, pedra sob pedra.

  11. “Talvez ao aceitarmos a pecha de hipócritas; jogaram-nos no rosto a
    desigualdade que se agravou com o tempo, porque a riqueza, distribuída
    sem controle, beneficiou alguns à custa dos demais; deram a ela
    expressão étnica.” Hipocrisia é o termo que define tudo!

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