Pobre no orçamento, rico no imposto de renda

Posso falar do Lula outra vez? Pergunto e eu mesmo respondo: posso! Afinal, este é o derradeiro artigo do ano de 2022. E quem foi a grande figura deste ano tão difícil que atravessamos? Existe salvador da pátria? Se existe, nós sabemos quem é.

Não pense, leitor, que este parágrafo inicial entusiasmado signifique admiração fervorosa e irrestrita pelo presidente eleito. Não! Tenho minhas reservas, minhas dúvidas. É natural. Ninguém é perfeito e ninguém merece ser poupado de críticas. E o papel de pessoas como eu será não apenas apoiar, mas também criticar, se necessário, o futuro governo brasileiro.

E, em especial, cobrar o cumprimento das promessas de campanha. Por exemplo, o candidato Lula disse diversas vezes que pretendia “colocar o pobre no orçamento e o rico no imposto de renda”. Perfeito. Nada mais justo, nada mais necessário.

O que significa essa fórmula feliz? Duas coisas, pelo menos. Primeiro, modificar a composição do gasto público. E, em segundo lugar, aumentar a tributação sobre os super-ricos.

Vamos por partes, à moda de Jack, o Estripador. Do lado do gasto, o importante é assegurar que os programas governamentais beneficiem em primeira instância os pobres, os miseráveis, os mais necessitados. No jargão eufemístico do economista: as pessoas de baixa renda. Fundamental, portanto, abrir espaço no orçamento para aumento expressivo das transferências sociais, inclusive o Bolsa Família, para o aumento do poder de compra do salário-mínimo e, também, para maiores despesas de educação e saúde focadas no mais pobres. Merenda escolar, por exemplo. Farmácia popular, outro exemplo. Também moradia. Transporte público.

Veja, leitor, que falei em “abrir espaço”. Isso significa cortar gastos supérfluos, que beneficiam os mais aquinhoados. Como declarou o vice-presidente eleito, Geraldo Alckmin, será preciso passar um pente fino nas despesas de governo e identificar o que pode e deve ser cortado, os programas ineficientes, de baixa qualidade, e em especial as despesas que beneficiam os super-ricos, aqueles que já têm renda e riqueza em excesso. Isso inclui, diga-se de passagem, rever as isenções e os incentivos tributários, os chamados gastos tributários, que representam nada menos que R$ 371,1 bilhões em 2022, o equivalente a quase 4% do PIB, segundo estimativa da Receita Federal.

Bem sei que tudo isso é muito mais fácil de escrever do que de colocar em prática. Para cada programa ineficaz e de baixa prioridade, para cada incentivo fiscal inútil ou duvidoso, existem um ou mais grupos de interesse, não raro poderosos, que lutam para preservar os seus privilégios. E logo aparece, do lado do governo, a turma do deixa disso, sempre disposta a contemporizar. Se o presidente da República der ouvidos a esse pessoal, nada de importante será feito.

A linha de menor resistência, leitor, será sempre sobrepor os programas sociais aos programas ineficazes e concentradores de renda já existentes. Pequeno problema: o nível do gasto público é alto no Brasil. Novos aumentos serão difíceis de conciliar com a estabilidade e o desenvolvimento da economia.

E do lado da receita? Nesse ponto, o nível de embuste das discussões econômicas habituais alcança uma espécie de ponto máximo. O assunto é vasto. Tratarei de apenas alguns aspectos. Dedico, em todo caso, um pouco mais de espaço a esse lado da questão, que tende a ser negligenciado (et pour cause!).

De fato, é fundamental colocar os ricos no imposto de renda, como disse o candidato Lula. Melhor dizendo: colocar os super-ricos. Importante não deixar margem para exploração política ou politiqueira. Não se trata de aumentar a carga tributária sobre a classe média, que já é elevada. E muito menos sobre a população pobre, que suporta a pesada carga de tributos indiretos. Os super-ricos, que dominam a mídia tradicional, conseguem normalmente vender como aumento de impostos sobre “a sociedade” qualquer tentativa de fazê-los contribuir um pouco mais para o funcionamento do Estado.

Eis a verdade incômoda: o Brasil é um paraíso fiscal para os bilionários, a tenebrosa turma da bufunfa. Essa turma não quer nem ouvir falar em tributação.

Ora, o nosso país é um dos mais desiguais do planeta. Em 2021, de acordo com o IBGE, o 1% mais rico da população tinha uma renda média 38,4 vezes mais alta do que a renda média dos 50% mais pobres. Repare, bem, leitor: 38,4 vezes! Um dos fatores que contribuem para isso é a injustiça do sistema tributário. Em 2019, um único brasileiro declarou renda de R$ 1,4 bilhão, sendo R$ 1,3 bilhão em dividendos livres de tributação!

A quantidade de injustiças da tributação brasileira não cabe em um artigo. Remeto a meu livro mais recente, “O Brasil não cabe no quintal de ninguém”, que traz, na sua segunda edição, um texto um pouco mais alentado sobre a subtributação dos super-ricos. E pretendo voltar ao assunto, nesta coluna, em 2023.

Por ora, listo alguns exemplos escandalosas. O imposto de renda da pessoa física se torna regressivo após a faixa de 30 a 40 salários-mínimos (isto é, tributa proporcionalmente menos as rendas mais elevadas). A renda do capital é isenta na pessoa física ou sujeita a tributação proporcional ou de baixa progressividade. A alíquota marginal máxima é pequena (em tese e do ponto de vista da justiça, nada impede estabelecer alíquotas marginais mais elevadas sobre os super-ricos). Além disso, a não correção da tabela progressiva sobrecarrega a classe média, inclusive a classe média baixa.

A injustiça é maior do que se imagina. Em 2020, para os declarantes que ocupam o topo da pirâmide (os 0,01% mais ricos), 63% dos rendimentos ficaram isentos, em média, e 30% sofreram tributação exclusiva na fonte! Ou seja: apenas 7% dos rendimentos, em média, entraram na tabela progressiva. Em 2020, a alíquota efetiva média dos 0,01% mais ricos foi de apenas 5,4%, próxima à dos assalariados que recebem em torno de R$ 6.500 mensais! (Dados da Receita Federal, que me foram repassados pelo auditor fiscal Paulo Gil Hölck Introíni.)

O Brasil é ou não é um tremendo paraíso fiscal para os super-ricos?

A tributação da riqueza também é modesta. Heranças e doações estão sujeitas à alíquota máxima de 8%. Iates e aviões particulares estão isentos de IPVA. O Imposto sobre Grandes Fortunas, previsto na Constituição de 1988, nunca foi criado. O Imposto Territorial Rural corresponde a apenas 0,1% da arrecadação federal.

Para completar o quadro, as fragilidades da administração tributária, agravadas durante o governo Bolsonaro, permitem que os bilionários escapem dos impostos com relativa facilidade. Praticam o chamado planejamento tributário, com assessoria de advogados tributaristas regiamente remunerados.

Os beneficiários desse paraíso tributário são exatamente os mesmos que, por intermédio dos seus serviçais – uma legião de economistas e jornalistas econômicos –, entopem a mídia tradicional com clamores por “responsabilidade fiscal”.

Veremos o que o novo governo fará para colocar “o pobre no orçamento e o rico no imposto de renda”. A resistência à mudança será grande, como sempre, mas é uma luta que vale a pena.

***

Uma versão resumida deste artigo foi publicada na revista “Carta Capital”. O autor é economista, foi vice-presidente do Novo Banco de Desenvolvimento, estabelecido pelos BRICS em Xangai, de 2015 a 2017, e diretor executivo no FMI pelo Brasil e mais dez países em Washington, de 2007 a 2015. Lançou no final de 2019, pela editora LeYa, o livro O Brasil não cabe no quintal de ninguém: bastidores da vida de um economista brasileiro no FMI e nos BRICS e outros textos sobre nacionalismo e nosso complexo de vira-lata. A segunda edição, atualizada e ampliada, começou a circular em março de 2021. E-mail: [email protected]; Twitter: @paulonbjr; Canal YouTube: youtube.nogueirabatista.com.br; Portal: www.nogueirabatista.com.br
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