Um dia ainda longe daqui, onde o Estado sufoca Floyd

Assistir à condenação do ex-policial Derek Chauvin pelo assassinato do negro Goerge Floyd não dá nenhum prazer – a vida de Floyd não voltará – mas obriga à reflexão de como estamos longe de saber que a morte de um homem negro, indefeso e que não ameaçava ninguém, por policiais vá ser tratada como o que realmente é: um assassinato.

Hoje, nos Estados Unidos, milhares de policiais norte-americanos estão diante de um fato que rompe a tradição de sua polícia – como da nossa aqui – de que matar um negro pobre não é um crime e pode ser feito sem medo de punição.

Isso deveria ser simples de entender, banal mesmo. Mas é algo que foi expulso da cabeça de grande parte da sociedade desde nosso passado escravocrata e, de maneira muito intensa, desde os anos 70, quando o medo da violência e da criminalidade foi usado como alicerce de um policialismo cada vez maior.

A ideia do “bandido bom é bandido morto” tinha a correspondência de que “polícia boa é a que mata”,

Os que passaram dos 60 lembram-se, claro, da caveira com duas tíbias cruzadas e o EM, esquadrão da morte, dos ‘plásticos” nos automóveis, no Rio. Ou da fama da “Rota” em São Paulo. Ou dos jornais “sanguinolentos”, com fotos de corpos crivados de bala e um cartaz dizendo variações de “menos um”. Como agora falam em “CPF cancelado”.

Para minha geração, as coisas são imensamente amargas. Os que acompanhamos Leonel Brizola em seu esforço para romper essa brutalidade – quem duvidar olhe a foto tirada pouco antes de sua eleição, em 1982, onde negros são conduzidos pela polícia com cordas no pescoço, feita por Luiz Morier, mas que em nada difere das gravuras de Debret da colônia escravista.

Imaginem, àquela altura, o que foi colocar a Polícia Militar sob o comando de um negro, o Coronel Carlos Magno Nazareth Teixeira, e de um negro que não aceitava a violência fundada no racismo. Não permitir a truculência ainda hoje cotidiana contra as comunidades faveladas virou “não deixar a polícia subir o morro”, defender o tratamento digno a quem era detido tornou-se “proteger bandido”.

E tome de “jiripoca vai piar”, “senta o dedo”, “larga o aço”, “escracha” e outras delicadezas, disparadas todos os dias, pela TV e pelo rádio, discursos de guerra e intervenção militar que, 40 anos depois, provaram sua total inutilidade contra o crime mas que foram úteis, muito úteis para conduzir pilantras ao governo, de Moreira Franco até Wilson Witzel.

E para formar guetos, terras hostis, em clima de guerra, que levaram gente inocente, de boa paz, como o amigo brizolista Tim Lopes, logo ele, capaz de dividir um alojamento com os peões das obras do Metrô, nos anos 70, para contar com realismo como viviam aqueles trabalhadores, submetidos a condições subumanas.

Aqui, não faltaria quem justificasse as barbaridade que se fez a George Floyd. Grande (1,93 m), forte (100 kg) e negro, só poderia ser “bandido”. E como cumpriu 5 anos por assalto a mão armada, alguém duvida que seria tratado assim?

Só não foi porque que o sucessor de Debret e de Luiz Morier, um celular seguro pelas mãos trêmulas de uma adolescente, Darnella Frazier, mostrou o que muita gente não quer ver: o exercício brutal que a polícia, em nome da sociedade, parece e está autorizada a praticar.

Não era um “joelho perdido” o que não deixava Floyd respirar e assim seguiu até matá-lo.

Era o poder do Estado, exercido pelo seu aparato de controle social mais poderoso: a polícia.

Quem luta por um Estado democrático nunca pode esquecer disso: permitir uma polícia (e claro, uma Justiça) que põe o joelho no pescoço dos pobres e negros nega a democracia. Pior, a torna uma assassina.

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