Vacinas e automóveis: ou temos os nossos ou não temos nenhum

Uma das coisas curiosas no discurso de Bolsonaro é que ele fala verdades a serviço de mentiras.

Neste caso da Ford, de fato ele tem razão em dizer que as multinacionais do setor sempre nos chantagearam atrás de benefícios fiscais.

Verdadeiríssimo.

Mas as multis sempre tiveram com o governo um jogo de malandros: elas ganhavam rios e o Estado brasileiro alguns riachos: empregos, impostos, circulação de riqueza e, claro, uma industrialização subsidiária causada pela criação de uma cadeia de fornecedores locais.

O curioso é que, ao mesmo tempo, se evidenciam contradições neste campo assemelhadas a outras, que ocupam as manchetes de jornais: a capacidade nacional de produzir vacinas.

Fica mais evidente ainda quando a gente vê o país “catando” vacinas na Índia, emergente como nós, mas, a esta altura, “proprietária de algo perto de 100 milhões de doses de imunizantes produzidos localmente, enquanto nós não produzimos aqui sequer uma dose de vacina até agora.

Tenho insistido aqui que países da dimensão do nosso não tem razão – nem possibilidades – de funcionar sem produção própria quando se trata não só de indústrias de base, fornecedoras de matérias-primas, mas das que agregam valor de conhecimento tecnológico à produção física.

Olhem os demais: Índia, Rússia, China por acaso abrem mão de tê-la?

Na indústria automobilística, na qual o governo JK nos abriu à condição de dependentes das montadoras mundiais – abortando a incipiente indústria nacional, ainda que associada, numa tarefa que se consumou na ditadura, com a liquidação da maior montadora brasileira associada, a Vemag, que produzia adaptações da DKW, atualmente a Audi, da VW.

O Butantan e a Fiocuz, hoje, são quase tudo o que resta da produção de fármacos no Brasil, isso num país que, pela população e pela presença de doenças, desesperadamente precisa de uma indústria farmacêutica.

Qual é o melhor medicamento do mundo, o que salva uma vida com uma caixa de comprimidos de preço inacessível ou o que, com milhares, ou milhões de doses oferecidas consegue salvar 80 ou 90% de uma população de milhões de pessoas?

Entre o Vioxx, que se provaria um perigo, e a velha penicilina, não havia comparação possível em termos de importância para a saúde, mas era o inverso em percepção e preço.

Assim como esta pandemia fez o país revalorar o SUS, deve fazer com que nos voltemos para a ter uma indústria farmacêutica própria, que necessita de proteção de mercado para ter escala e viabilidade.

A Coreia, quando começou a produzir automóveis, era um país muito atrasado industrialmente frente ao Brasil. Idem a Índia em matéria de indústria farmacêutica. O mercado interno serviu-lhes de plataforma de exportação mundial.

O nosso projeto, porém, é despejar minério de ferro e soja nos porões de navios, por esteiras rolantes.

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