Nogueira Batista: O pior vira-latas da história

Paulo Nogueira Batista Jr., sempre uma visão lúcida neste mar de mediocridades que se limitam ao mero entendimento contábil da economia, publica – e reproduzo abaixo – uma versão ampliada de seu artigo foi publicada esta semana na revista Carta Capital.

Nela, analisa o quanto há de desgaste e de resiliência no governo de Jair Bolsonaro, que ainda “preserva quase todos os seus pilares iniciais de sustentação política, ainda que avariados”.

E, guardando as proporções, constrói uma paráfrase com a ascensão meteórica de Adolf Hitler na Alemanha dos anos 30 e o passo exagerado que a ambição sem tamanho o fez dar ao invadir a antiga URSS – a famosa e fracassada Operação Barbarossa – e virar, ali, contra sí a maré até então vitoriosa da guerra.

Vale, linha por linha, a leitura. Se não der tempo agora, assista o resumo em vídeo ao final do post.

Bolsonaro vai invadir a União Soviética?

Paulo Nogueira Batista Jr.

Vou me arriscar no campo pantanoso da política outra vez. Começo com a pergunta que está na cabeça de todos: Bolsonaro tem futuro? Questão crucial, pois quase equivale a perguntar: o Brasil tem futuro?
É inegável que a crise do coronavírus e, em especial, a incapacidade do governo de lidar com ela provocaram imenso desgaste. Bolsonaro está cada vez mais isolado. Há quem o considere um cadáver político ambulante, prestes a ser ejetado da Presidência.

Wishful thinking? Provavelmente, sim. As notícias de sua morte são prematuras. Impressiona a resiliência do apoio ao governo nas pesquisas recentes de opinião (cerca de 30% de bom ou ótimo). Isso depois da demissão de dois ministros populares e bem avaliados: Mandetta e, sobretudo, Moro.

Um quadrúpede de cinco patas

Mesmo assim, parece claro que a demissão de Moro foi um lance de alto risco, pois derrubou um dos pilares do esquema que levou Bolsonaro à Presidência: a aliança com o Lava Jatismo. A ameaça se vê reforçada pelo fato de Moro ter saído atirando, com pesadas denúncias ao presidente. As denúncias vão ser apuradas, como se sabe, e a apuração poderá enfraquecer Bolsonaro, Moro ou os dois.

Bolsonaro mostra-se, frequentemente, o pior inimigo de si mesmo. Empenha-se não raro em cavar a própria sepultura, atingindo inclusive pontos nevrálgicos do seu esquema de sustentação política. Além do Lava Jatismo, os pilares desse esquema são o bolsonarismo (inclusive milícias), o mercado, as forças armadas e a relação supostamente especial com Trump.

O governo começou como um quadrúpede de cinco patas, diria Nelson Rodrigues. Com a saída do marreco de Maringá, ficou reduzido às quatro patas regulamentares. Excetuado o bolsonarismo, que ainda apresenta certa solidez, as outras três parecem um pouco bambas.

Trump tem mais o que fazer; dá repetidas indicações de que está se lixando para o seu lacaio brasileiro. Com a crise internacional, o “America First” vem sendo levado ao paroxismo, reduzindo a pó qualquer expectativa de apoio mais sólido do lado americano.

Os militares, por sua vez, guardam um silêncio enigmático, mas devem estar preocupados com o desgaste que o envolvimento com este governo acarreta para as forças armadas. A saída constitucional, recorde-se, colocaria um general na presidência. Aqui Bolsonaro cometeu um erro que pode se revelar fatal: escolheu um vice-presidente que não assusta e tampouco se destaca pela lealdade. A julgar pela experiência, nada mais perigoso do que ter um vice tipo Temer, e não tipo José de Alencar.

A relação com o mercado também não prima pela solidez. Bolsonaro não é um quadro orgânico da turma da bufunfa, como foi por exemplo Fernando Henrique Cardoso. O acerto com o mercado passou pela nomeação de Paulo Guedes e Roberto Campos Neto para os cargos-chave na área econômica. Mas o primeiro não tem mais o mesmo prestígio com o presidente. As recentes declarações de apoio a ele por parte do presidente são, como se diz no futebol, do tipo “o técnico está prestigiado”.

Ainda que todas essas fragilidades e incertezas, fato é que Bolsonaro continua na presidência, com os instrumentos de que o presidente dispõe no regime presidencialista. E preserva quase todos os seus pilares iniciais de sustentação política, ainda que avariados. Não se deve perder de vista, em particular, a já mencionada confiança de cerca de 1/3 do eleitorado, número que permanece surpreendentemente elevado.

Lembranças da 2ª Guerra Mundial

Um paralelo com a Segunda Guerra me veio à mente. Comparações entre política e guerra ou entre política e futebol podem ser interessantes. Não passam evidentemente de analogias, não se prestam a explicações e muito menos previsões. Mas podem ajudar, pelo menos, a ilustrar alguns pontos.
Em 1942, quando os ingleses conseguiram expulsar as tropas do Marechal Rommel e retomar o Egito, Churchill colocou água na fervura das comemorações: “Este não é o fim, nem sequer o começo do fim, mas talvez seja o fim do começo”, disse ele. E, de fato, a queda de Hitler só viria em 1945.

Não poderíamos dizer o mesmo sobre Bolsonaro, ainda que o horizonte tenha que ser contado no seu caso em meses e não anos? Apesar do desgaste que vem sofrendo com a crise em março e abril, Bolsonaro não chegou a seu fim, nem sequer ao começo do fim, mas pode estar no fim do começo.

Desnecessário frisar que daqui para frente muito dependerá da determinação com que seus adversários políticos, não só da esquerda e centro-esquerda, mas principalmente da direita tradicional, atacarão os seus pontos fracos ao longo dos próximos meses.

As idiossincrasias do presidente e a sua inclinação para lances ousados funcionaram até agora – mas ao preço de aumentar o número de seus opositores e inimigos, até mesmo na extrema direita. Guardadas as proporções e as diferenças de contexto, Bolsonaro não lembra Hitler em alguns aspectos? O líder da Alemanha nazista teve, no começo, carreira de grande sucesso, baseada em apostas arriscadíssimas, mas também em astúcias e manobras diversionistas. Sem dar um tiro, ele reincorporou a Renânia desmilitarizada desde a Primeira Guerra, depois anexou a Áustria, depois anexou os Sudetos, em seguida ocupou Praga e o que restava da Tchecoslováquia. A cada passo, ele fazia recuos retóricos, assegurava suas intenções pacíficas e prometia parar ali. Quando invadiu a Polônia, em 1939, desencadeou a guerra com a França e o Reino Unido, mas continuou sua trajetória ascendente, derrotando a os franceses com surpreendente facilidade e ocupando vários outros países europeus.

A trajetória do capitão brasileiro não mostra, em miniatura, alguma semelhança com a do cabo austríaco? Desde a campanha eleitoral em 2018, Bolsonaro lançou-se em sucessivas manobras temerárias que deram certo, como as de Hitler inicialmente, mas que o deixaram cada vez mais isolado, com poucos aliados e inimigos poderosos, como ocorreu também com o líder nazista.
Até quando? A respeito de Hitler, Stalin fez a observação certeira: “É um gênio, mas não sabe quando parar”. Hitler deu o seu passo fatídico quando invadiu a União Soviética em 1941. Ao saber da notícia, Churchill fez o seguinte comentário (curioso pelo tempo do verbo): “So we won the war after all!” (Então, ganhamos a guerra, afinal!)

Bem. Bolsonaro não é nenhum gênio, longe disso, mas pode-se perguntar: quando fará a sua invasão da União Soviética? Quando solapará definitivamente, por excesso de auto confiança ou erros de cálculo, os pilares remanescentes da sua sustentação política? Lances ousados, que levem à perda de apoio dos militares ou do sistema financeiro, podem ser para ele o equivalente à invasão da União Soviética, especialmente se acompanhados de erosão do apoio na opinião pública.

Paulo Guedes parecia estar pela bola sete, mas Bolsonaro mostrou noção de timing e recuou. Não podia tirar Guedes logo depois de defenestrar Moro. Talvez seja questão de tempo. Uma alternativa seria substituí-lo por outro nome da confiança do mercado. Campos Neto, que já está no governo e parece mais flexível, talvez seja uma alternativa.

O radicalismo doutrinário do ministro da Economia é uma fonte de instabilidade. Outra, um possível conflito latente entre a ala militar e a equipe econômica. Difícil avaliar até que ponto os militares insistirão em planos de investimento em infraestrutura incompatíveis com a orientação da equipe econômica. Se o fizerem, poderão levar o chefe a mais uma manobra perigosa: a demissão do ministro da Economia, o que arriscaria abalar suas relações com a turma da bufunfa.

Uma questão de timing

Cabe então uma dupla paráfrase de Churchill: estamos no fim do começo, mas ainda não podemos dizer que ganhamos a guerra.

Não quero espalhar desalento, mas tudo é possível, inclusive a sobrevivência de Bolsonaro e até mesmo a sua reeleição em 2022. Que os seus adversários não cometam o mesmo erro que os de Lula cometeram na época do mensalão, em 2005 e 2006. Lula parecia liquidado e decidiu-se deixá-lo sangrar até o fim do primeiro mandato, na expectativa de que seria possível derrotá-lo nas eleições de 2006. Lula, como se sabe, deu a volta por cima e conquistou um segundo mandato.

Imagine, leitor, o seguinte cenário. Passada a pandemia, a economia começa a se recuperar, ainda que lentamente e com dificuldades, possivelmente no final deste ano ou no início do próximo (excluída a hipótese tenebrosa de uma segunda onda de contágio). As expectativas do brasileiro são sabidamente muito baixas. O alívio de ter superado a emergência de saúde pública abrirá espaço para que Bolsonaro, se ainda estiver no cargo, assuma ares de vencedor, reivindicando os louros do fim da pandemia e do início de recuperação econômica. Estaremos então a menos de dois anos da eleição presidencial – tempo de sobra para que ele possa se preparar para disputar a reeleição.

Eis o que eu queria dizer: o afastamento desse presidente danoso depende crucialmente de timing. Não se pode dar o bote cedo demais. Como disse Emerson, “when you strike at the king be sure that you kill him” (quando atacar o rei, tenha certeza de que irá matá-lo). Mas também não se pode demorar além da conta e perder a oportunidade para sempre.

Da escolha do momento certo depende o destino de Bolsonaro e, mais importante, do próprio Brasil.

Paulo Nogueira Batista Jr. é economista, foi vice-presidente do Novo Banco de Desenvolvimento, estabelecido pelos BRICS em Xangai, e diretor executivo no FMI pelo Brasil e mais dez países. Acaba de lançar pela editora LeYa o livro O Brasil não cabe no quintal de ninguém.

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15 respostas

  1. Excelente como sempre mas, como tudo no Brasil e no mundo hoje, incerto. Noutro dia postei que é inacreditável que 30% achem bom ou ótimo esse governo que não fez absolutamente NADA de bom. Inclusive aniquilou direitos e conquistas do povo. Mas como estamos num país de zumbis imbecilizados, admite-se que seja possível. Mas daí acreditar que daqui a dois anos, os brasileiros vão reeleger esse doente mental, aí é pra preparar o passaporte e ir embora dessa porcaria de pais pra nunca mais voltar.

  2. Que farrapo deve ser a alma de alguém que joga todas as suas esperanças em Bozo. Um ser que faz o estômago de qualquer um revirar ante a simples visão… mas quase 25% dos brasileiros adultos o amam, e acreditam que terão uma vida melhor com a ajuda dele. Que desalento, que escuridão deve ter enfrentado o brasileiro que está nessa situação. Antes de raiva ou incompreensão, eu tenho pena. E desejo nunca passar pelo o que essa gente passou. Amém

  3. As lideranças que pensam no Brasil, políticas, trabalhadoras, empresariais e até as financeiras, deveriam ler esse artigo com calma e muita reflexão. Pelo andar da carruagem o destino que nos espera é realmente desastroso e o tempo certo para agir e corrigir o rumo já está em curso, se passar de uns 3 meses, estará no tempo errado.

  4. Oi Brito, o título do post está um pouco ambíguo, pode parecer que o Nogueira Batista é que é o pior vira-lata da história.

  5. Admito muito o Paulo Nogueira Batista Jr. mas em um ponto penso diferente. Acho um erro buscar o impeachment do Bolsonaro. Creio que o Bolsonaro sobrevive a ele e se fortalece (o que não me mata me fortalece). A situação dele é diferente do Lula, que tinha um projeto de país, executado em boa parte. Bolsonaro não tem nada, exceto destruição e já destruiu bastante também. A crise econômica vai destruir o que resta do Bolsonaro. Deixemos que ele sangre até morrer em vez de ressucitá-lo.

  6. Um general disse que Bolsonaro, com a manifestação de domingo, provou que tem apoio popular.

    Isso é um grave engano. Certamente ele tem algum apoio popular, mas este apoio, tirando um núcleo duro de extremistas, não é firme e nem pode ser contabilizado pelos poucos manifestantes que estavam em Brasília.

    Aliás, a julgar pelas barracas de acampamento dos manifestantes, todas iguais e novas em folha, tende-se a acreditar que aquilo não pareceu em nada com manifestação espontânea.

    E depois que se descobriu que pelo menos um dos manifestantes era funcionário de um ministério e que, segundo o UOL, não está desligado do trabalho, mas nele não pisa há tempos, quem poderá garantir que não havia por ali muitos como ele?

  7. Minha aposta, sobro o Bozo é que ele não tem racionalidade suficiente para admitir qualquer erro ou derrota. Assim não haverá capitulação. Na hora final, que está bem próxima, ele novamente fará como Hitler:
    Bolsonaro vai cometer suicídio!

    1. Suicidio, na sua melhor definição, é um ato covarde que exige muita coragem. Incompatível com Bozo

  8. Excelente artigo! Eu acrescentaria um aspecto: Bolsonaro não precisa contar com sorte para saber o momento certo de tomar uma decisão importante. Ele pode ter informações em tempo real vindas de sistemas de monitoramento da opinião de pessoas em redes sociais. Assim ele pode fazer movimentos que, para nós, parecem suicidas, mas depois se provam corretos dentro da estratégia de construção de um governo totalitário. Ao que parece, é o que aconteceu com Mandetta e Moro, que foram movimentos surpreendentes.

  9. Muito bom o texto, como de hábito no caso do autor. Mas aviso que a “turma da bufunfa” já abandonou o barco do Bozo há alguns meses. A demora e a incapacidade de Guedes para tocar as reformas que faltam, na opinião dos “mercados”, assim como a trava nas privatizações, já fizeram o seu devido estrago. Uma eventual saída de Guedes será a “Invasão da União Soviética”, é claro, porque seria escancarar o adeus às idiotices neoliberais assassinas que tem mantido Bozo em seu lugar até agora. Mas mesmo com Guedes, será inevitável que Bozo seja defenestrado assim que o mercado achar que pode substitui-lo por coisa melhor, menos imbecil e razoavelmente mais eficiente em negociar com o Congresso. O timing será acelerado pela pandemia e não está muito longe.

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