Conversa que espero ter com meus bisnetos. Por Marceu Vieira

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Tudo isso vai passar. Como tanta coisa já passou, tudo isso vai passar. E, quando passar, quando hoje já for História, seremos, em algum momento, acordados em nossa cadeira de balanço pelos mais jovens com um pedido pra que a gente desvende os segredos deste tempo. Os desvãos deste tempo.

Eles, os mais jovens, vão perguntar de que lado estávamos, como nos comportamos, a quais manifestações comparecemos – às do pato da Fiesp ou às dos vermelhos da Dilma.

Eu já imagino minha conversa com meu neto ou minha neta, ou, quem sabe, se eu tiver ainda mais sorte, com meu bisneto ou minha bisneta.

– Vovô, o que, afinal, aconteceu em 2016? Foi golpe mesmo?

– Foi, meu amor. Foi sim.

– Mas o bisavô do meu amigo diz que não foi golpe, não… Por quê?

– Ele devia ser coxinha…

– Coxinha?! O que era isso, vovô?

– É como a gente chamava o pessoal da classe média e da classe alta que ia pra frente da Fiesp, na Avenida Paulista, adorar um pato de borracha. Mas veja, nada contra o pessoal da classe média ou da classe alta.

– Um pato de borracha? Adorar?

– Sim. Era um pato amarelo feio à beça. Um imenso balão de borracha na forma de pato que virou símbolo dos protestos dos conservadores pra derrubar a presidente Dilma. Aquele pessoal adorava o pato num sentido bíblico, de adorar uma imagem, entende?

– Não…

– Bom…

– Mas, vovô, conta mais. Como foi o golpe? Vocês pegaram em armas? E esses coxinhas? Também?

– Não, meu bem. Isso tinha acontecido no outro golpe, o de 1964, dado pelos militares. Esse, de 2016, foi um golpe civil, parlamentar, apoiado por uma direita enxovalhada e que já andava débil, montado pelos piores políticos que havia no Brasil, e sustentado pela grande mídia. A arma principal deles foi o apoio da grande mídia…

– Grande mídia? O que era isso, vovô?

– Ah, desculpe, amorzinho. Eu esqueci que vocês não veem mais televisão, nem há mais jornais de papel. Esqueci que, hoje, vocês têm milhares de canais na internet.

– Que internet, vovô! Internet é coisa de velho. A gente hoje vê as coisas no…

– Não me fale sobre isso de novo. Não tenho mais idade pra aprender essas coisas.

– O que a grande mídia fez?

– Pois é. Foi assim. Em 2002, na quarta tentativa depois de 21 anos de ditadura militar, a esquerda chegou ao poder no Brasil. Lula, um operário que havia fundado o Partido dos Trabalhadores com alguns intelectuais e artistas, virou presidente da República. Ele foi muito bem no primeiro mandato e se reelegeu. No fim do segundo mandato, como tinha ido bem de novo, ele elegeu a Dilma. O primeiro governo dela fez boas coisas, mas atravessou algumas crises. Principalmente por causa de denúncias de corrupção. Petistas históricos foram presos. Muitos foram condenados. Mas, ainda assim, a Dilma se reelegeu.

– Ah, é por isso que o bisavô do meu amigo chama você de petralha?

– O quê? Diz pra ele que petralha é a…

– O que, vovô?

– Deixa pra lá. Bom, meu benzinho, por causa da crise ética que fez do PT um igual do PMDB…

– O quê?!? Vovô!!! Já tinha PMDB naquele tempo???!!! Caraca!!!

– Pois é, meu bebê, já tinha PMDB, sim. Parece que sempre vai haver.

– Conta mais!

– Bom, por causa da crise ética do PT, agravada por outra crise, essa econômica, e que cresceu muito rápido, o resultado da eleição tinha sido muito apertado. A Dilma ganhou por pouco do Aécio Neves. Aí…

– Quem era esse Aécio Neves?

– Era um coxinha.

– Ah, tá.

– Deixa eu contar. Aí, já no primeiro dia depois da eleição, os conservadores começaram a falar em impeachment. Primeiro, queriam fazer isso baseados nas acusações de corrupção contra gente do PT. Depois, como viram que nenhuma acusação de desvio de dinheiro pesava contra a Dilma, eles procuraram, procuraram, procuraram e acharam uma razão que, pela Constituição, daria margem ao impeachment. Disseram que a Dilma havia cometido “pedaladas fiscais”, ou seja, como se ela tivesse mentido sobre os números oficiais do governo. Ela tinha feito isso pra poder economizar e investir em projetos sociais mais necessários.

– Ah, entendi! Ela fez como o papai faz quando diz que não tem dinheiro pra comprar um brinquedo novo, prometido no início do ano, porque precisa economizar pro supermercado e pra escola da gente.

– Mais ou menos isso.

– E isso era razão pra impeachment, vovô?!

– Foi a maneira que eles encontraram. Mas a grande mídia e eles próprios, os coxinhas, só falavam em corrupção, em corrupção, em corrupção. Uma coisa que nem estava em julgamento no impeachment. No fundo, o que os conservadores queriam era o poder. E, apoiados pela grande mídia, que só falava em Lava-Jato, apesar de a Dilma não ser acusada de nenhum roubo, eles conseguiram o impeachment.

– O que era Lava-Jato?

– Era uma investigação necessária comandada por um juiz chamado Sérgio Moro pra prender os corruptos. Bom, aí assumiu o Michel Temer…

– Quem era esse? Nunca ouvi falar, vovô. Parece marca de perfume.

– Era outro coxinha. Era do PMDB. Ele era o vice da Dilma.

– Peraí, vô! O vice da Dilma era do PMDB?! Como assim?!

– Sim. Ele era o vice da Dilma e assumiu a Presidência, acabando com projetos importantes tocados pelo PT.

– O vice da Dilma era do PMDB?! Como assim?!

– Sim, meu amor, ele era do PMDB. O PT tinha feito um acordo com o PMDB na eleição. E o candidato a vice-presidente havia sido indicado pelos peemedebistas.

– Nossa, vovô! Mas eu achava que o PT não tinha nada a ver com o PMDB…

– Não tinha. Mas, depois, acabou tendo.

– Vovô, mas o PT não passou a ter muito corrupto mesmo?

– Sim, benzinho. O partido guardava uma origem linda, baseada na solidariedade e na honestidade, na humanização das relações, na inclusão dos negros, das mulheres, dos homossexuais, dos desfavorecidos, na construção de um país justo, com escola e saúde públicas boas pra todo mundo. Mas, no poder, muitos deles repetiram seus adversários e fizeram acordos com os mesmos empreiteiros que haviam enriquecido nos governos anteriores. Alguns foram seduzidos pelos milhões da corrupção…

– Vovô, você tá chorando?

– Não, lindeza. É impressão sua.

– Puxa, vovô. Quer dizer que a culpa de o PT ter se dado foi mal foi do próprio PT?!

– De certa forma, sim, neném, porque eles mesmos construíram as armadilhas em que seriam apanhados. No poder, o discurso petista da ética continuou público, mas, no ambiente privado, muitos deles cederam aos encantos da riqueza fácil. Muita gente que era do PT deixou o partido chateada com isso. Alguns desses fundaram o PSOL e foram pra oposição ao PT. Curiosamente, no impeachment, acabou sendo do PSOL o apoio mais bonito à Dilma, no Congresso e nas ruas, na batalha contra o golpe. Foi a exibição mais linda e mais triste de que a beleza do PT havia ficado pra trás, perdida em alguma rua do tempo.

– Vovô, você era do PT naquela época?

– Eu nunca fui filiado a partido nenhum, amor. Sempre votei na esquerda, nunca votei na direita. Nunca. Votei na Dilma, por exemplo, nos dois turnos de 2010 e no segundo turno de 2014. Depois, também fiquei muito chateado com o PT por ele ter se igualado aos partidos adversários na prática do poder.

– Então, por que você defendeu tanto a Dilma e foi contra o golpe?

– Justamente por ser um golpe, meu bem. Por achar injusto, muito injusto e muito feio o que fizeram com a Dilma. Inclusive pelo PT, que dilacerou seu passado e, depois, entregou o seu futuro esquartejado pra ela tentar remontar. Apoiei por acreditar que, se não há roubo, não se pode retirar uma pessoa do poder só porque não gostamos do governo dela. Por achar que o momento certo de fazer isso é na eleição. Mas os coxinhas conseguiram…

– E quem mais era coxinha, vovô?

– Ah, além do bisavô do seu amigo, tinha o Bolsonaro…

– Quem?!?

– É… Desse é feio falar, meu amor. Desse eu conto quando você crescer um pouco mais.

PS. Já não apresento mais Marceu Vieira porque seria pleonasmo falar da delicadeza dos seus textos.  Como este, que me fez lembrar meu avô e seu retrato de Getúlio Vargas e o fio da História que nunca nos desatará, trinta anos depois de sua morte. Mas continuo pedindo que visitem o  blog do Marceu, nem que seja para manter a chama acesa em quem escreve tão bem. 

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12 respostas

  1. Adorei a sutileza do “quem era esse Aécio Neves?” Realmente, a história acaba determinando os nomes que dela farão parte. Muitos não serão lembrados.

  2. Minha conversa com meu neto ou neta:

    – Ah, que bela namorada ou namorado você tem! Mas só uma perguntinha para ela ou ele: como seus pais e avos se comportaram no biênio de 2015-16?
    – Afe mamo, não sei!
    – Vamos lá, eles tem vergonha? Fizeram algo que se arrependeram?
    – Acho que manifestaram de verde amarelo.
    – Neto ou neta, tira este traste da minha casa AGORA! E você faça questão de terminar com esta porcaria! Se não você vai ser execrado da família!

    E se ele ou ela continuar namorando com o mesmo ou a mesma, vou no casamento deles só para acabar com o mesmo, fico pelado só para o negocio não rolar!

  3. És grande, Zé Ninguém, quando cantas as antigas canções do teu
    povo ou danças ao som do acordeão, porque os cantos do povo são
    pacíficos, e são-no em todos os lugares do mundo. E és grande
    quando afirmas ao teu amigo:

    “Ainda bem que o destino me concedeu até hoje uma vida limpa e
    sem ambições, que pude acompanhar o crescimento dos meus
    filhos, ouvir-lhes as primeiras palavras, vê-los mover-se, andar,
    brincar, fazer perguntas, assistir à sua, alegria; ainda bem que não
    deixei passar a Primavera sem a sentir, que pude gozar o vento
    ameno e o rumorejar dos regatos e o canto das aves; que não perdi
    o meu tempo em mexericos com os vizinhos, que amei a minha
    companheira e que senti correr no meu corpo o fluxo da vida; ainda
    bem que, mesmo em tempo de perturbação, não perdi o norte nem o
    sentido da vida. Pois que me foi possível escutar a voz que
    murmurava no meu intimo: ‘Existe apenas uma única coisa que vale
    a pena: viver bem e alegremente a própria vida. Escuta a voz do teu
    coração, ainda que tenhas de afastar-te do caminho trilhado pelos
    timoratos. E não consintas que o sofrimento te torne duro e
    amargo.’ E assim, na quietude do cair da tarde, quando me sento na
    erva em frente de minha casa, depois de um dia de trabalho, com a
    minha mulher é os meus filhos, ouço no pulsar da natureza à minha
    volta a melodia do futuro: ‘Humanidade inteira, eu te abençôo e
    abraço.’ E desejaria então que a vida aprendesse a defender os seus
    direitos, que fosse possível modificar os espíritos duros e os
    medrosos, que só fazem troar os canhões porque a vida os
    desapontou. E quando o meu – filho instalado no meu colo me
    pergunta: ‘Pai, o sol desapareceu, para onde foi, achas que volta
    depressa?’, respondo-lhe: ‘Sim, filho, há-de voltar amanhã para nos aquecer'”.

    W. Reich.
    (ESCUTA ZÉ NINGUÉM)

  4. É preciso que se conte na trama maquiavélica dos ministros do STF aqueles “@lguns” citados por Jucá, e que por ora assumirá a 2 turma que julgará a lava jato, Gilma Mendes, sempre foi ele, Celso de Mello, Dias Toffoli e provavelmente mandará prender Lula nos calabolsos da ditadura do golpe judiciário/parlamentar…

  5. Hahahahahaha…. sera que vc se viu no texto? É o teu amor contrariado pela Jararaca que azedou teu humor?

  6. Apenas a título de atualização.
    Não chamem mais de coxinhas, agora o correto é Escondidinhos :-)
    Saudações democráticas a todos.

  7. Gostei da história, nao concordo somente com dois esquecimentos.
    A covardia do poder judiciário .
    A motivação maior do golpe, a riqueza do pre sal que teve de ser doada de mão beijada pelos golpistas para garantir a sobrevivência deles.

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